Historiadores, sociólogos, antropólogos e “apreciadores” da literatura têm procurado esculpir a cidade como uma superfície de conglobação de linguagens. Essas linguagens acabam por condimentar o discurso da modernidade. A temática “Literatura e Cidade” tem estimulado inúmeras investigações em dissemelhantes cabimentos do saber e do conhecimento. Será que na medula da literatura, a experiência urbana e a “crónica” escrita não estão encaixadas no universo dos signos e dos símbolos? Será que a cidade não tem capacidade para conceber significados? Será que a mesma não apresenta, e analogamente aos textos literários, inúmeras interpretações? Será que o número de interpretações não hospeda uma correspondência com o número de leitores?
É oportuno salientar que as diferenças originam diversas leituras e interpretações, nomeadamente quando evidenciamos uma determinada cidade segundo os seus próprios momentos históricos e contextos culturais. Será que o encadeamento entre literatura e experiência urbana não se metamorfoseou em mais visível e perceptível na modernidade? Será que a Revolução Industrial não transformou visceralmente a cidade? Será que debaixo da chancela do desenvolvimento não se modificou a silhueta urbana e se alteraram as experiências dos cidadãos?
As cidades passaram a ser “cidades da multidão”, tendo as ruas como desenho vigoroso da sua cultura. Logo, a cidade passou a ser o palco, ou seja, a protagonista de múltiplas obras, crónicas e poemas. Será que os moradores, as lojas, os cafés, os monumentos, a gastronomia, o centro da cidade e os arredores da mesma não estão caracterizados no âmago das narrativas literárias?
Investigar acerca das representações da cidade, no plano escrito edificado pela literatura, é ler textos que lêem e decifram a cidade, degustando a paisagem urbana, os relatos culturais mais exclusivos, os hábitos e as tradições, assim como o mapa simbólico, no qual se intersectam o imaginário, o utópico, o ficcional, a história e a memória da cidade. Será que não é fundamental considerar e saborear a cidade como discurso? Será que a cidade escrita não é consequência da leitura? Será que a mesma não é uma construção do indivíduo que a lê, interpreta e descodifica? Será que a cidade não deve ser analisada como uma espécie de “liquefacção” simbólica e material, bem como tela de transformação na procura incessante de acepção?
Escrever a cidade é também ler e compreender a cidade. A escrita da cidade e a cidade como escrita constituem uma fragrância repleta de fascinação, magnetização, complexidade, representação, interpretação, pigmentação, agnição e significação. A narrativa literária reconhece e estabelece uma “sublimidade” sobre o real, estruturando o seu discurso pelos percursos do imaginário e fazendo chegar os acontecimentos até ao leitor como representação de algo. Neste contexto, podemos seguramente asseverar que a narrativa literária “problematiza” a realidade histórica. Será que a realidade histórica não constitui uma ferramenta ou uma matéria-prima para que o artista reformule e recrie a realidade? Será que não existe uma penetrante dinâmica entre os indivíduos e a sociedade? Será que essa dinâmica não é composta por interacções, transferências e reorganizações? Será que o escritor não manifesta o seu próprio ser no mundo real?
Os indivíduos encaixam-se dentro de uma conjuntura já existente ou herdada, ou seja, com texturas de pensamento consignadas à mesma, procurando perfectibilizar as formas dinâmicas de reacção herdadas. Na realidade, cada cidadão é predeterminado pelo facto de ser concebido no seio de uma sociedade, encontrando pensamentos estabelecidos, estereótipos instituídos e contextos definidos. Será que a produção literária não pode ser saboreada como um fenómeno de cariz social? Será que a produção literária não advém de convicções, símbolos, crenças, códigos, práticas e automatismos sociais? Será que a mesma não revela a sociedade? Será que essa revelação é absoluta? Será que a produção literária, em determinadas ocasiões, não transforma e rejeita a sociedade?
A literatura desponta de uma ocasionada realidade ou textura histórica, todavia essa circunstância não acarreta que a mesma deva ser o seu registro fiel e íntegro. Por vezes, e felizmente, a literatura apresenta uma imagem ou um reflexo da sociedade que a própria sociedade se nega a aceitar. O texto literário não agasalha a pretensão de testemunhar ou provar que os acontecimentos relatados tenham sucedido de modo concreto ou absoluto. A narrativa também exprime o sentimento e a sensibilidade do autor perante a sociedade e o mundo. A história e a literatura fazem eco do passado e possibilitam a “detonação” do homem no hodierno. Será que as práticas e as representações sociais não constituem duas facetas da vida ou da existência social? Será que a prática social não pode ser resumida ao entremetimento corpóreo do indivíduo no mundo percepcionado? Será que essa prática social não é legitimada pelo conjunto das representações? Será que essas representações não sucedem concomitantemente com a prática social?
O conceito de representação social revela-nos a complexidão adjacente à própria imagem, uma vez que integra ou corporaliza tudo aquilo que for tocante em determinados campos como sejam os das intelectualidades; mentalidades; ideologias; valores; apreços; expectativas; e memórias.
A cultura da hodiernidade é elevadamente urbana e compreende duas comensurações inseparáveis. A cidade é o local das diligências, comportamentos, procedimentos e actuações sociais reformadoras; da transfiguração capitalista e financeira das sociedades; e das manifestações culturais e artísticas. O espaço urbano acaba por ser o argumento, o sujeito e o protagonista. Temos a ideia de que é na cidade que a vida moderna se efectiva, ou seja, é na cidade que tudo acontece. As cidades, através do contributo da modernidade, metamorfosearam-se em autênticos mananciais exportadores de inspiração e de idealização. Será que as cidades mais populosas não foram as responsáveis pelas “explanações” e “ilustrações” instituidoras da modernidade ocidental? Será que o processo de construção de identidade não pode ser observado em algumas das narrativas da vida urbana?
A produção literária apela pelo imaginário, pois é esse imaginário que estabelece novas disposições, técnicas e histórias incomuns. O imaginário e o criativo pigmentam e entusiasmam a substância criada. É o ponto de vista do artista sobre o real. Essa contemplação ou ponto de vista do autor costuma ocupar um lugar de destaque nos debates acerca das telas culturais e das sociedades actuais. Será que para a sociedade, na qual tudo é concebido para ser visto, o “observar” não constitui um problema ou uma fonte de polémica?
A sociedade, na qual tudo é descartável, teima em amamentar a trivialidade, a banalidade, a aparência, os chavões e os estereótipos. Parece que as imagens passaram a constituir a realidade. Torna-se complicado perfilhar e laborar com o conceito tradicional ou comum de representação, uma vez que a ideia de realidade hospeda no seu âmago tudo aquilo que a devia representar. Será que não é extremamente intrincado diferenciar aquilo que é real daquilo que não é real? Será que num cenário formado por imagens, o real não deixa de ter realidade?
A paisagem urbana é constantemente estudada tendo em conta os seus encadeamentos com as antinomias sociais; as memórias não esquecidas; e as congruências do presente. As construções poéticas desafiam a imaginação, fazendo com que as cidades a exaltem. Em redor de cada imagem poética, ocultam-se outras, originando uma superfície de assemelhações, proporções e objecções.
A cidade passou a ser o grande centro da vida intelectual, social, cultural e política, bem como das mais importantes discussões que produzem os movimentos culturais e sociais. Nas cidades desfilam informações, novas linhas de pensamento, notícias originais e renovadas inclinações estéticas. A cidade embrulha dissemelhantes grupos sociais, provenientes de diversos lugares que transportam diferentes ideias, sonhos, propósitos, “paladares” e visões do mundo. O espaço urbano transformou-se num objecto poético, sendo, simultaneamente, um dos assuntos capitais das representações visuais do Universo contemporâneo. Será que a cidade não é um “enovelado” texto humano?