Na sociedade contemporânea, residentes de alguns bairros e profissionais de algumas áreas padecem de uma espinhosa imperceptibilidade social, ou seja, não só passam inobservados, como também não são reconhecidos na sua plenitude como seres humanos.

Esta amarga congeminência leva-nos a considerar que, em certos casos, a existência está condensada exclusivamente a uma libré, a alguns instrumentos de trabalho e ao local onde vivemos. Infelizmente todos os dias se assanham as desigualdades entre os grupos que agasalham o poder e aqueles que estão à margem do mesmo.

É seguramente legítimo questionar se os bairros de realojamento social são efectivos locais de inclusão e de elevação social. Frequentemente os mesmos são metamorfoseados em autênticos, infecundos e áridos guetos. Estes bairros ou guetos acondicionam algumas minorias que, se por um lado melhoram as suas condições de habitabilidade, de conforto e de bem-estar, por outro vêm aumentados os seus enigmas individuais e colectivos ao nível social, económico e cultural.

Jamais colocarei em causa a necessidade, embora com uma fiscalização mais diligente e menos titubeante, de se consumarem os realojamentos de pessoas que vivem em habitações precárias. Todavia, é o modo como o realojamento é efectuado que se deve colocar em causa, uma vez que é por demais evidente que uma boa parte dos realojamentos serviu simplesmente para deslocar problemas socioeconómicos de bairros ilegais, para bairros sociais pintados em tons de legalidade. A verdade é que esta “circunstância” tem promovido uma desresponsabilização recíproca entre os impulsionadores e os recebedores da casa.

A inclusão social, desenhada unicamente pela existência de uma habitação considerada adequada, torna-se muitíssimo redutora. Há variadíssimos géneros de exclusões que nada têm a ver com a habitação em si. A mais que previsível conservação de determinadas condições vivenciais e sociais em espaços esplendidamente concentrados, como são os bairros sociais, contribui para o acréscimo dos comportamentos desviantes.

Neste contexto, será pertinente asseverar que o sistema de realojamento geralmente é gélido, fleumático, burocrático e bastante descompassado das realidades sociais e culturais das populações receptoras. Um dos problemas capitais dos realojamentos reside precisamente na “semelhança” social que caracteriza a estruturação destes guetos. Esta “condição” impede a convivência dessa população com outros grupos de referência. Esta coexistência facultaria, não só a aquisição de diferentes paradigmas, como também outras oportunidades de existência social. A verdade é que estas “castas” seriam impulsionadoras de superiores expectações de ascensão social. Portanto, a aglomeração de pessoas com “semblantes” económicos, sociais e culturais semelhantes tem propensão a fortalecer e a reimprimir um fatalismo social, especialmente perceptível quando se tratam de populações carenciadas.

No capitalismo, os princípios basilares da “autenticação” circulam à volta de fisionomias económicas, proveitosas e consumistas. Os indivíduos socialmente imperceptíveis são aqueles que não conseguem inscrever-se no raciocínio do dinheiro, bem como aqueles que não estão preparados para acompanhar os chamamentos consumistas. Desafortunadamente vamos acreditando que a única condição para se edificar uma verdadeira identidade esteja intimamente ligada à aquisição de bens materiais.

Também será pertinente afirmar que a invisibilidade social está visceralmente associada a valores e considerações, impregnados de estereótipos e chavões, que são “arremessados” sobre alguns espaços e sobre algumas laborações, homogeneizando os indivíduos, e privando-os da sua originalidade e da sua peculiaridade. As pessoas que “vestem” esta desbotada indumentária são velozmente invalidadas pelas outras, uma vez que estas somente conseguem desemaranhar e amamentar a sua intrínseca inflexibilidade. Será que ser invisível não é uma condenação que promove sensações de desconsideração e aromas a rebaixamento?

Todos os arquétipos que elidem e circundam os valores predominantes constituem “figuras” que nos apadrinham o conhecimento de uma panóplia de “feições”, estruturantes e configuracionais, das praxes de exclusão. Aqueles que aos olhos dos outros passam completamente desapercebidos e, segundo os seus próprios pressentimentos, estão totalmente desguarnecidos, acabam por não cooperar e não participar na comunidade, encontrando-se por essa razão no exterior da “irmandade”. Os “dinamismos” profissionais e os locais onde habitamos parecem transmitir aquilo que cogitamos, imaginamos e confeccionamos. O enigma surge quando os mesmos representam um vazio na sua universalidade, ofuscando integralmente a subjectividade, a visibilidade, a idealidade, a fantasia e a singularidade de cada indivíduo. Neste encadeamento, será legítimo afirmar que a imperceptibilidade social afigura-se como uma forma de afastamento, de um determinado indivíduo, em relação a um grupo ou a uma comunidade.

Será que este afastamento social, por já estar tão erigido e enraizado na sociedade, não vai desfilando numa configuração assoladora e costumeira?
Numa organização existem funcionários que efectuam empreitadas indispensáveis à sociedade contemporânea, mas por as mesmas serem apresentadas como de categoria inferior, vulgarmente são compreendidos não como seres humanos, mas sim como meros componentes de toda a orgânica organizacional. Na moderna e mordaz sociedade de consumo, em que os valores individuais estão profundamente associados a “colocações” e disposições sociais, ao estatuto social, à afiguração e às aparências, a utilização de um despretensioso uniforme representa uma eliminação social dissimulada. O “estigma” é um fenómeno que desfila nas correspondências humanas, que não só representa um enigma social, como também exterioriza “cofragens” desdenhosas e humilhantes.

Trabalhar num ofício que não está “inventariado” no organograma da instituição, provavelmente é mais pernicioso e complicado de assimilar do que laborar numa “actividade” em que a sua verdadeira significação esteja catalogada a algo negativo ou ilícito. De uma forma ecuménica, os seres humanos têm a tendência para contemplar os outros segundo a sua utilidade social, e aqueles que não estiverem confortavelmente posicionados metamorfoseiam-se em algo insignificante e obtuso. Logo, o “rosto” da invisibilidade social contribui claramente para a consolidação de uma compreensão humana inteiramente deteriorada e circunscrita à fragmentação social da labutação, na qual a função assume uma maior relevância que o indivíduo. Apesar da indiferença frequente pelo “crédulo” operário com escassa formação, a realidade patenteia que uns não sobrevivem sem os outros.

A prédica plutocrata caracteriza-se por ser dinâmica, enérgica e descartável, com sucessivas reformulações, execuções, representações e actividades, e com proposições céleres e lacónicas, nas quais existe a indispensabilidade de o indivíduo celebrar, amamentar e desenvolver a sua identidade social.
Devemos ter a consciência que o nosso contemplar, que na maioria das vezes carimba os seres humanos como um gélido algarismo, numa sequência de “eliminados”, deve reflectir e considerar, em prol de uma sociedade mais pigmentada, aquilo que verdadeiramente está à nossa frente, e não aquilo que egoistamente e irracionalmente queremos avistar. Neste encadeamento, torna-se inadiável rasgar com o protótipo estereotipado e discriminatório que desfila na nossa sociedade, e, concomitantemente, agenciar estratagemas que autorizem a inclusão desses trabalhadores nos grupos sociais e na comunidade.

As correspondências preconceituosas edificam-se progressivamente e rapidamente na vida dos indivíduos. “Desfrutamos” da impressão que valores como a imparcialidade, honestidade e consideração deixaram de ter eco e importância. Diante desta ponderação, podemos confirmar que o entendimento que um determinado indivíduo tem de si próprio está visceralmente inventariado à maneira pela qual é compreendido e “sentenciado” no seio do grupo a que pertence.

Em várias ocasiões, as condutas de aviltamento social passam-nos completamente ao lado, sendo por esse motivo inobservadas, uma vez que não diferenciamos a nossa gesticulação. Um sorriso; um olhar; um abanar da cabeça; um contemplar apressado; uma alteração nas feições; ou uma retirada escarpada constituem exemplos dessa incompreensão. É extremamente importante ter a noção de que somente mencionar a “formosura” do conceito “imperceptibilidade social”, não nos transportará para a verdadeira abrangência e emaranhamento que o mesmo acarreta.

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