Ruas com história e rosto. Um casal de idosos passeia alegremente.

O candeeiro que sobressai de um prédio. O turista que não pisa a calçada, apenas a fotografa. Bancos do jardim repletos de pombos. A mulher que discute e aperta o casaco castanho. Alguém partiu o canteiro de madeira e deixou um lenço de papel no chão. Um carro que passa a alta velocidade. Uma varanda com três vasos verdes e um estendal azul sem uma única peça de roupa. Os semáforos não funcionam. A criança pontapeia uma bola. O pássaro assusta-se e voa para cima de um telhado preto. A bola atravessou a rua e ficou debaixo de um carro. O gato sente-se incomodado com o barulho e foge para uma arrecadação. A cabine telefónica tem o vidro partido, não há privacidade. Um jovem olha atentamente para o calendário. O lixo está fora dos contentores vazios. A santidade toponímica é aborrecida. Os cães farejam e marcam o território. Um homem de camisola cinzenta esqueceu-se de pagar o estacionamento. Afinal os parquímetros estão avariados, não têm papel. Ruas com história e rosto. Um casal de idosos passeia alegremente. Um vestido de cor púrpura atrai as atenções. As fontes de humidade desfiguraram um prédio. As sarjetas continuam entupidas. A rede de malha verde do andaime ofusca a montra de lingerie. Um lancil riscou a jante de um carro. As árvores, os postes e os sinais de trânsito colocados em cima dos passeios. Uma senhora, com mobilidade reduzida, caminha no meio da estrada. Um homem repara o telhado preto e alimenta o pássaro. O pássaro satisfeito sobrevoa a arrecadação e é devorado pelo gato. As lojas trocam olhares. O prédio amarelo e vermelho contrasta com a cor do solo. O homem da estátua tem os braços abertos. Um cão abana a cauda ao ver o dono. A sombra de alguns jovens interrompe o traço contínuo no alcatrão. Um homem sentado a ouvir o noticiário na rádio. Mais à frente, um homem lê o jornal em pé. Uma criança deixa voar o balão, mas não chora. A manifestação começou. Cartazes a preto e branco sem palavras de ordem. Esplanadas quase vazias. A campainha da escola toca para o intervalo. Seis alunos jogam futebol sem bola. O pavimento precisa de uma limpeza. Uma mãe com o filho ao colo e olhar terno. O programador de rega falhou. O centro comercial abriu portas. A Internet falhou. O pânico instalou-se. A mensagem não foi enviada. O alarme da loja não pára. Uma senhora de meia-idade comprou cosméticos. Um idoso escorregou e caiu. Uma jovem atenta ao telemóvel não ajudou. Um ourives contempla o expositor dos relógios. O cheiro irresistível das torradas da pastelaria. Os autocarros atufados de gente aflita. Os sapatos em saldos. As beatas no chão com um cinzeiro por perto. Os animadores de rua sorriem. Os arrumadores de carros discutem. A arte urbana aclamada por um grupo de jovens da terceira idade. Um abraço apertado entre pai e filha. O professor que fica contente por ver a antiga aluna. Caiu o brasão da casa brasonada. Um filho oferece uma flor à mãe. Um casal de namorados beija-se e abraça-se com fervor. Uma parede pintada a três dimensões. Um carro trancado e sem inspecção. A publicidade que turva a beleza da fachada de um edifício centenário. Uma avó que oferece uma moeda e uma torrada. Olhos tristes e tímidos que agradecem. A rua como espaço para morar. A fome, o frio e o medo de mãos dadas. Uma mãe aflita. Um filho com fome. Uma hera que tapou a placa toponímica. Os sem-abrigo acordam de mais uma noite sem dormir. A sobrevivência nos contentores de lixo. Exclusão social tão evidente e perturbante. Diferentes realidades que têm em comum a pobreza dilacerante. Por vezes tratados com compaixão, quase sempre com repressão, desamor, preconceito, indiferença e crueldade. Contextos temporários ou permanentes. As duas mãos estendidas em silêncio. Trapézios sem rede. Corações desalinhados. Ausência de vínculos familiares. Mantas desbotadas e caixas de cartão. Gorros rasgados e roupas geladas. Sacos de plástico com sobras de comida. Algumas seringas com vestígios de sangue. Barbas que encobrem as rugas e a melancolia. Dois carros colidiram numa avenida que tem o nome de um santo. Os pombos abandonaram os bancos do jardim. O casal de namorados teve um pequeno arrufo. A caixa multibanco avariou. O estendal azul ficou cheio de roupa. O centro comercial, entretanto, fechou. A Internet não foi reposta. A mensagem continua por enviar. As sirenes começaram a soar.