O homem pelejando contra quimeras e fantasmagorias, e idealizando imagens, fantasias e sonhos edifica sistemas, estruturas e doutrinas apropriadas às “modernas intelectualidades”.

Apesar do desmoronamento dos domínios com sustentáculo na sujeição e na escravatura, outras configurações paradoxais de uma recente organização internacional ameaçam a sociedade.

De entre essas contradições podemos destacar: o esforço constante pelo aperfeiçoamento, pelo desenvolvimento e a miséria que assola diversas comunidades; e o apelo incessante pela paz, pelos direitos humanos e a guerra que brota em diversos pontos do globo.

Se tivermos como pano de fundo a situação actual em que a humanidade desfila, facilmente podemos asseverar que um dos maiores “propósitos” contemporâneos será o de conseguir que cada indivíduo viva e conviva de uma forma digna e honrada.

A grande dissemelhança entre a eutanásia social e a eutanásia reside no facto da primeira estimular a morte antes do tempo, de forma espinhosa, embaraçosa e deplorável, enquanto que a segunda antecipa a morte de maneira amena e sem sofrimento. Contudo, constituem designações pouco deleitosas e melodiosas.

A vida humana é “mediada” por abundantes enigmas. A labiríntica sociedade moderna agasalha um cunho enorme de indeterminação, apadrinhando a fundação de uma doutrina socioeconómica extraordinariamente excludente.

Nesta perspectiva, boa parte dos indivíduos que compõem a sociedade irá desaguar nas tenebrosas ondas da morte extemporânea e da marginalização.

O tema “eutanásia social” está intimamente ligado a esta conjuntura de incompatibilidades, de antagonismos e de desdobramentos antinómicos, bem como ao desaparecimento da constância científica e cultural. Há uma crescente impressionabilidade, por parte da sociedade, em relação ao problema.

A eutanásia social é um resultado do desenvolvimento libertino da modernidade que sempre foi sentida sob a indumentária da alforria, tanto ao nível da libertação das leis da natureza, como da “independência” da história.

Neste encadeamento, a modernidade pode e deve ser interpretada como a indagação ininterrupta do douto, a soberania tecnológica em relação à natureza e à comunidade, e o desenvolvimento de poderosos arquétipos ideológicos.

De qualquer forma penso que será injusto apontar à modernidade exclusivamente aspectos negativos, uma vez que sem a mesma não teríamos atingido a “conjuntura” civilizacional que atribuiu às sociedades o bem-estar, a emancipação, a independência, a liberdade, o conhecimento mais profundo da humanidade e as condições mais humanas de vida.

Porém, a esperança, a confiança e a fé há muito que deixaram de ser as vitaminas que proporcionavam entusiasmo ao indivíduo nas suas pesquisas e que o amparavam nas suas fadigas, no seu labor e nos seus esmorecimentos.

Será que a ventura e o sucesso imaginado pelo utilitarismo interesseiro não catapultam o indivíduo para um cenário de afogo e desapontamento?

O homem pelejando contra quimeras e fantasmagorias, e idealizando imagens, fantasias e sonhos edifica sistemas, estruturas e doutrinas apropriadas às “modernas intelectualidades”.

Prontamente a humanidade começou a compreender as consequências desumanas e ferinas dos “propósitos” da modernidade, através de fenómenos como as bombas nucleares ao “serviço” dos países desenvolvidos; as armas químicas à disposição de países do terceiro mundo; a exploração de recursos de forma irracional e visando unicamente o lucro; a construção genética que coloca em causa a própria existência da sociedade sob a insígnia da opulência que somente considera alguns; e a industrialização descomedida que modifica a estabilidade, consistência e harmonia do ecossistema.

Com estas consecutivas metamorfoses não só é profundamente atingido o entendimento da existência e da “extinção”, como também a subjectividade e a independência dos indivíduos.

As dificuldades do indivíduo estão interligadas com a ausência de capacidade e denodo para arquitectar outro imaginário colectivo capaz de conferir significação e tradução às relações sociais, bem como com o afastamento dos valores culturais históricos.

A eutanásia social é uma das consequências evidentes e espontâneas do utilitarismo, que advoga o supremo gozo da vida; da privação do sentido de respeitabilidade humana; da secularização do universo social; da ruptura da solidariedade e cooperação; da negação de alteridade; do individualismo; da luta pelos interesses instantâneos, prosaicos e materiais; e da idealidade que encoraja as pesquisas da razão.

A eutanásia social tem em consideração a extensão social em que a morte se “estabelece”, examinando a extinção de milhões de pessoas por culpa da veemência e da inexistência de condições mínimas de bem-estar no moderno encadeamento social e económico.