Será que a realidade daquilo que são verdadeiramente as crianças não é inferida da veracidade dos paradigmas que os adultos fazem dela? Será que não é fundamental dissecar aquilo que fazemos às crianças? Será que não é pertinente aquartelar a noção daquilo que as crianças constroem com o que nós lhes fazemos? Será que as dissertações e exposições interligadas à protecção de menores, e particularmente à adopção, não têm “saboreado” algumas doses de esquecimento e de negligência por parte da sociedade e do Estado? Será que existe algum arquétipo ou ciência que coloca a criança como protagonista e edificador social de si próprio, bem como daquilo que a circunda? Será que alguém se lembrou de esculpir a criança como argumento primordial de análise?
Em Portugal existem dezenas de milhares de crianças inventariados na moldura de acolhimento familiar ou abrigo institucional. Boa parte dessas crianças ainda aguarda pela confecção e significação de um diagrama pessoal de vida. Em paralelo com essas formas de acolhimento temos a adopção. Esta configura-se e posiciona-se como outra das soluções exequíveis, tendo como finalidade outorgar uma família às crianças “desguarnecidas” de núcleo familiar normal ou natural. Será que o tema adopção não agasalha perímetros considerados tabus? Quais são as superfícies científicas que suprimem esses tabus? Será que os parcos trabalhos que foram despontando nos últimos tempos não estacionaram principalmente nos objectivos, motivações, representações, reproduções, expectações e procedimentos dos candidatos à adopção? Será que esses franzinos estudos não incidiram exageradamente na perspectiva dos adultos envolvidos?
Inúmeros especialistas, designadamente magistrados, legisladores e técnicos especializados do campo social, expugnam decisões e fundam estratégias de protecção à infância em risco, alicerçados sobretudo em cenários estereotipados das crianças. Esses cenários costumam desperdiçar contextos concretos e reais das suas vidas, contando meramente a imagem que os adultos fazem das crianças. Na realidade, existem alguns grupos de indivíduos que, com o decorrer do tempo, foram granjeando o direito legítimo de serem escutados e de salvaguardarem as suas próprias conveniências, como sejam, por exemplo, os trabalhadores e as mulheres. Do lado inverso temos as crianças que se têm preservado invariavelmente desviadas destes importantes processos. Será que as crianças não formam um grupo de pessoas que pode legalmente exigir o direito a ser escutado e atendido? Será que o primeiro obstáculo na aplicação e na disseminação deste direito não resulta das concepções predefinidas que agasalhamos das crianças, assim como da opinião de que as mesmas devem amadurecer antes de absorverem a liberdade para actuar sozinhas ou por si próprias? Será que a protecção das crianças não tem sido o motivo primordial apontado para a limitação da sua liberdade? Será que a mesma não é autenticada pela sua argumentada ausência de comprometimento, capacidade, responsabilidade e competência”?
As “inabilidades” físicas, intelectuais e morais adjudicadas às crianças acabam por lhe conceder um código de menoridade que certifica a correspondência de poder e de autoridade entre pais e filhos. A criança é concludentemente eliminada da tomada de decisões e balizada na sua comunicação e participação activa em múltiplos vértices da existência social. Para se aperfeiçoarem os contextos de vida das crianças torna-se indispensável instituir planos e modelos em que as mesmas sejam efectivamente escutadas e interpretadas. Similarmente temos que começar a considerar que nem sempre os objectivos dos adultos coincidem com as conveniências das crianças e que, nestas condições e itinerários, impera habitualmente o interesse do adulto.
O empenho e a participação das crianças e dos jovens institucionalizados na tomada de deliberações que possam influenciar a sua vida deve ser uma tela cada vez mais pigmentada, uma vez que esse “comprometimento” pode avigorar a capacidade dos mesmos para funcionarem e se incorporarem não só no patamar das relações sociais como também no da sua asserção enquanto cidadãos legítimos da sociedade. Será que não é necessário respeitar e aplicar o princípio de que só a partir da perspectiva da própria criança é que conseguimos compreender o mundo da criança, com as suas particularidades, especificidades e características próprias?
A adopção pode ser saboreada como a entidade que procura facultar às crianças, destituídas de núcleo familiar, o crescimento absoluto, integral, coerente e harmonioso da sua personalidade numa atmosfera de bem-querer, de paz, de cor e de discernimento, através da sua inclusão numa nova família. Será que as crianças querem mesmo ser adoptadas? Será que as mesmas preferem continuar a viver nas instituições tutelares que as albergam até acumularem independência suficiente para a inclusão na sociedade? Que modelo de família as crianças escolheriam? Prefeririam casais jovens ou casais idosos? Escolheriam casais com ou sem filhos “naturais”? Quais são os conceitos que essas crianças agasalham sobre a adopção? Quais são as opiniões que as mesmas têm sobre a sua futura família?
A infância tem sido meditada e analisada na óptica dos adultos, ou seja, num prisma centrado nos adultos.