As últimas décadas do século XX, época de veementes e profundas fracturas e de possantes e vigorosos “apressuramentos” da experiência do tempo sentido e vivido, contemplaram o aparecimento da “indispensabilidade” da memória. Algumas das memórias do século XX desaguaram em experiências e em vivências traumáticas oriundas de guerras, massacres, carnificinas e genocídios. Será que não é fundamental abordar determinadas experiências de memórias traumáticas perfilhando, como principal sustentáculo, a primeira e, sobretudo, a segunda Guerra Mundial? Será que não foram acontecimentos que procriaram, para milhares e milhares de indivíduos, recordações “proibidas”, “sitiadas”, “desprezadas” e “emudecidas”? Será que as vítimas sobreviventes das grandes guerras e dos campos de concentração não constituem autênticos casos de análise e de investigação? Será que não é essencial desenhar e circunscrever meditações e considerações sobre as memórias traumáticas dos enlutados e toldados pela morte, em morticínios e cenários dantescos, de entes queridos? Será que não existem Países que se preocupam tanto com a memória, como com o esquecimento? Será que actualmente a cultura da memória não está profusamente disseminada pelo mundo inteiro?
Talvez coligadas aos contextos de memória, as últimas décadas do século XX também embrulharam múltiplas questões e objectos intimamente inventariados ao património, como sejam a restauração e a restruturação de antigos centros urbanos, bem como a musealização das cidades. Esta conjuntura verificou-se particularmente nos Estados Unidos e na Europa. Despontou uma descomunal inquietação com a conservação dos monumentos e das cidades mais antigas a partir da década de oitenta, relegando, este “itinerário”, para segundo plano a preservação da natureza. A sociedade estava alvoroçada e impaciente com a recuperação e reintegração de tudo aquilo que foi perdido ou esquecido. Qual é a memória que temos do século passado?
O “imperativo” da memória e o remorso do esquecimento, por vezes apregoando-se ou reivindicando-se memórias de tudo e de todos, com as suas imposições de conservação, de reabilitação, de regeneração e de comemoração “inflamaram” a própria função ou “utilidade” do património. Será que a questão patrimonial não alcançou um “patamar limite”, no qual tudo era considerado património ou susceptível de se metamorfosear em património?
Em períodos de cataclismos, de assolações, de fracturas, e de vigorosas acelerações e reorganizações na experiência do tempo vivido, o património e a memória constituem configurações que representam algumas respostas, soluções e premonições no “argumento” contemporâneo. Será que a cultura da memória não agasalha alguns padrões de esquecimento e de impassibilidade? Será que os meios de comunicação social não constituem veículos disseminadores da memória? Será que a memória, no âmago de uma perspectiva hodierna, não está bastante acessível? Será que o denso aumento dos níveis de memória não coincidiu com um espantoso incremento dos índices de esquecimento?
Salientar que quanto mais coactam os indivíduos à lembrança e os aterrorizam em relação ao esquecimento, mais temor eles sentem de se esquecer de algo e, naturalmente, mais veemente e intenso se tornará o acto do esquecimento. Será que não existe um vínculo entre memória e esquecimento? Será que a memória não é unicamente uma outra configuração de esquecimento? Será que o esquecimento não é uma forma de memória escondida? Onde enquadramos o medo do esquecimento? Como podemos viver resistindo constantemente ao esquecimento? Será que não se edificou um género de síndrome da memória?
Relacionado com o “síndrome da memória” e com o “medo do esquecimento”, deparamo-nos, e na medula do próprio mercado, que o passado alcança mais telas de atenção e de ponderação, por parte do consumidor, do que o futuro. Esta conjuntura acaba por exprimir que os comerciantes lucram mais com os produtos relacionados com o passado, do que propriamente com a venda de produtos “modernos”. Na realidade, existe uma incomensurabilidade de electrodomésticos desenhados e fabricados nos últimos tempos que copiam modelos produzidos no passado. Será que estas particularidades não fazem parte de um presente anormalmente desenvolvido? Será que não vivemos num presente cada vez mais contraído? Será que as constantes e viscerais inovações tecnológicas não fabricam produtos quase ultrapassados? Será que esses produtos não se metamorfoseiam, num curto espaço de tempo, em autênticas telas de museu?
Depois das múltiplas histórias e narrativas de guerra; dos esforços e experiências de descolonização; dos factos ditatoriais e opressores ocorridos em vários Países; e dos tristes e pardacentos genocídios em massa, parece que a nossa consciência e percepção foi afectada de tal forma que a conspecção da modernidade ocidental, bem como as suas promessas e compromissos enegreceram substancialmente no tutano do próprio ocidente. Nesta conjunção, e para inúmeros sujeitos, boa parte das recordações de experiências adquiridas e vivenciadas durante o século XX está turva e bloqueada. O trauma vivido, oriundo dos massacres e das guerras, impossibilita-os de albergar e de desfrutar reminiscências agradáveis e apaziguadoras. Será que estes indivíduos alguma vez tentaram glorificar o passado? Será que alguns deles não foram verdadeiros heróis e vigorosos protagonistas?
Podemos seguramente afirmar que muitas das vítimas sobreviventes da guerra, deparavam-se com múltiplas dificuldades e obstáculos para encontrar alguém que escutasse as suas experiências, estados de espírito, amarguras, mazelas, tristezas e padecimentos. Logo, a vontade e a firmeza de relatar aos outros os horrores e os temores que viveram em superfície de guerra eram velozmente amputadas. Será que a angústia, proveniente de não ter ninguém que as escute, não pode ser considerada um factor para que as vítimas tivessem consolidado uma memória traumática? Será que ouvir não é diferente de escutar?
Evidenciar igualmente que alguns indivíduos procuraram evitar que os seus filhos medrassem na recordação das suas “escoriações”. Uma pessoa ou até mesmo um grupo de pessoas podem ficar silenciadas, todavia esta circunstância não significa que se esqueçam das lembranças e das experiências traumáticas vivenciadas. Será que a memória traumática, ocasionada pela guerra, não constitui uma espécie de especificidade unicamente das vítimas? Será que em determinadas ocasiões, o silêncio não resulta de uma meditação sobre a própria utilidade e importância de falar ou escrever sobre o seu passado? Será que uma das configurações que deve sobressair da memória traumática não é o silêncio sobre si mesmo?
As recordações mais próximas e presentes dos indivíduos que viveram em cabimentos de guerra são de natureza sensorial, na qual se embrulham os odores, os ruídos e as cores. Este cenário demonstra que algumas das recordações desses indivíduos determinaram-se pelos barulhos dos aviões, dos tanques e das armas de fogo; cheiros proveniente dos explosivos; e gritos e carpidos desesperados das vítimas. Infelizmente muitos dos indivíduos que viveram a guerra tiveram colossais dificuldades em perfilhar itinerários de vida salutares e benignos. Patenteavam gigantescos embaraços quando tentavam edificar algo com congruência ou contar a sua própria vida, uma vez que as suas vivências foram pautadas por texturas embebidas em padecimento e ruptura. Neste sentido, é certamente oportuno referir a pertinência e importância que os filmes agasalham no “emolduramento” dessas memórias. Os filmes talvez sejam o melhor alicerce para captar, alcançar e conciliar todas as lembranças em objectos e superfícies de memória, colhendo não só as emoções e agitações, como também as funções da própria inteligência.
As recordações mais próximas e presentes dos indivíduos que viveram em cabimentos de guerra são de natureza sensorial, na qual se embrulham os odores, os ruídos e as cores. Este cenário demonstra que algumas das recordações desses indivíduos determinaram-se pelos barulhos dos aviões, dos tanques e das armas de fogo; cheiros proveniente dos explosivos; e gritos e carpidos desesperados das vítimas. Infelizmente muitos dos indivíduos que viveram a guerra tiveram colossais dificuldades em perfilhar itinerários de vida salutares e benignos. Patenteavam gigantescos embaraços quando tentavam edificar algo com congruência ou contar a sua própria vida, uma vez que as suas vivências foram pautadas por texturas embebidas em padecimento e ruptura. Neste sentido, é certamente oportuno referir a pertinência e importância que os filmes agasalham no “emolduramento” dessas memórias. Os filmes talvez sejam o melhor alicerce para captar, alcançar e conciliar todas as lembranças em objectos e superfícies de memória, colhendo não só as emoções e agitações, como também as funções da própria inteligência.
Alguns filmes colocam a nu o insuficiente conhecimento sobre as guerras, assim como o facto de esse conhecimento por vezes agasalhar a vulnerabilidade de um discurso, ou comunicação, que pode ser facilmente desmemoriado. Destacar que é necessário regressar ao mesmo vezes sem conta, pois o espaço temporal; as estratégias governamentais; as ideologias perfilhadas; a fraqueza da culpa e da falha; e a política dos Estados carcomem o “centro de erudição” que começou a ser edificado no período posterior às guerras. Portanto, o filme, nomeadamente o testemunho e o documentário, é uma forma de envolver as memórias, bem como uma ferramenta soberana para reestruturar a memória colectiva e reacomodar a memória nacional.