Neste dia mundial da água, 22 de março de 2017, optei por me debruçar sobre a evolução do abastecimento de água e saneamento águas residuais em Portugal, usando a reflexão cronológica: “ontem”, “hoje” e “amanhã”.

São 22h00 e começou a escurecer. Na bonita aldeia do interior, com cerca de 500 habitantes, onde a agricultura é a atividade principal, o sino da Igreja Matriz toca avisando todos os habitantes que chegou a hora de “recolher”.

A Dona Maria Beatriz, viúva, que nascera no verão quente de 1898, vestida rigorosamente de preto, com um lenço na cabeça da mesma cor, começou a preparar o jantar para o seu filho, António Manuel, que como é habitual foi guardar o gado no estábulo. Com a pele desgastada dos seus 75 anos de experiência de vida, Maria Beatriz, no regresso a casa, depois de mais um dia na lavoura, aproveitou e transportou da fonte pública da aldeia, à cabeça, por cima de uma rodilha meia rota, um cântaro cheio de água “limpa”. Essa água, com aquela que tinha sobrado do dia anterior, era suficiente tanto para preparar o jantar, como para o seu filho lavar-se. O ritual era diário, exceto ao domingo pela forte relação com a religião. A casa de pedra, onde ambos viviam, para além de não ter eletricidade nem saneamento básico, também não tinha água canalizada.

Esta era uma das muitas histórias que a avó de um amigo meu contava. Perto do final da vida dela, com um ar de felicidade desabafou comigo: “sabes meu filho, ainda bem que os tempos mudaram e que agora têm água para tomar banho todos os dias”.

Neste dia mundial da água, 22 de março de 2017, optei por me debruçar neste artigo sobre a evolução do abastecimento de água e saneamento básico ao longo dos últimos anos em Portugal, resgatando do baú das recordações esta pérola histórica, para apurarmos algumas das etapas relevantes deste setor.

Em suma, tentarei fazer neste artigo um exercício simples da estratégia que Portugal adotou para o setor da água, antes e depois da adesão à Comunidade Económica Europeia (CEE), usando a reflexão cronológica: “ontem”, “hoje” e “amanhã”.

 

“Ontem”

Fundos Comunitários em Portugal

Na sua aldeia, vila, cidade, associação, local de trabalho, entre familiares ou mesmo em conversas de café certamente já falou ou ouviu falar em “fundos comunitários” ou em “fundos estruturais” que, de uma maneira ou de outra todos temos de admitir que ajudaram muito o desenvolvimento do “cantinho” onde moramos. Mas como começou?

A 12 de junho de 1985, com o então primeiro-ministro Mário Soares, formalizou-se no Mosteiro dos Jerónimos, a entrada do nosso país para a Comunidade Económica Europeia (CEE). O sonho Europeu tinha começado.

Vivendo esse sonho, Portugal, entre 1986 e 2016, recebeu diretamente de Bruxelas, seguramente, mais de 100 mil milhões de euros em fundos estruturais, com um único propósito: Melhorar a Qualidade de Vida dos Portugueses. Será que o objetivo foi conseguido? Vejamos.

Esse montante, que para uns é uma quantia exorbitante mas para outros fica aquém das necessidades do País, trouxe-nos uma realidade que outrora era impensável. Transversal a todos os setores da sociedade a “torneira aberta” serviu, por exemplo, para: 1) estimular a criação de projetos empresariais; 2) desenvolver projetos na área ambiental; 3) formar e educar pessoas; 4) promover centenas de milhares de estágios; 5) financiar a construção de milhares de quilómetros de autoestrada, estradas e ferrovias; 6) construir e/ou reabilitar escolas, universidades, jardins-de-infância, hospitais, centro de saúde, museus, recintos desportivos e pontes; 7) modernizar os portos e aeroportos; 8) embelezar as nossas cidades, vilas e aldeias com rotundas, jardins entre outras obras públicas e, 9) uma fatia desse montante foi investido num dos setores que outrora a população da aldeia da Dona Maria Beatriz tanto necessitava: Abastecimento de Água e Saneamento Básico.

 

“O caminho faz-se caminhando”

Passados 4 anos da adesão à CEE, em 1990, é criado o Ministério do Ambiente e dos Recursos Naturais (MARN), liderado pelo professor Fernando Real. Até essa data a pasta do ambiente estava numa Secretaria de Estado que dependia do Ministério do Planeamento.

Com a pressão adicional da Conferência das Nações Unidas sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento, que teve lugar em 1992 no Rio de Janeiro – Eco-92 -, começou a trabalhar-se a toda a velocidade na transposição das diretivas europeias. Após muitas opções erradas, nomeadamente no caminho delineado na área da fiscalização e monitorização, criou-se em 1993 um grupo que viria a revolucionar o setor do abastecimento de água e saneamento de águas residuais em Portugal: a Águas de Portugal (AdP).

Até então esse setor, ou era da responsabilidade da Empresa Portuguesa das Águas Livres (EPAL) que tinha como foco o abastecimento à Grande Lisboa, ou das Câmaras Municipais espalhadas pelo País que, apesar de todos os esforços na tentativa de “tapar os buracos”, não apresentavam soluções sólidas e estáveis do ponto de vista ambiental.

A missão da Águas de Portugal era gigantesca. Tendo como pano de fundo a descentralização – maior proximidade, maior eficiência e maior eficácia nos serviços prestados aos cidadãos -, foram criadas de Norte a Sul várias empresas regionais, também designadas de sistemas multimunicipais. A AdP tinha como missão infraestruturar e garantir a modernização dos serviços, com o objetivo de melhorar a qualidade dos serviços prestados, tanto na área de abastecimento de água como na área do saneamento de águas residuais. Se tiver curiosidade em conhecer a evolução histórica do grupo, clique AQUI.

As obras tinham começado. A sua cidade, vila ou aldeia começava a ser invadida por máquinas de grande porte dos construtores locais e/ou nacionais. Com metas ambiciosas para atingir, tinha começado a era da revolução no setor das águas em Portugal.

No abastecimento de água foram remodeladas ou construídas as Estações de Tratamento de Água (ETA), as estações elevatórias de água (EEAA), as captações, os reservatórios e construídos muitos quilómetros de condutas nas quais “corre”, hoje, a água potável que chega às nossas casas. No saneamento básico, à semelhança do abastecimento, também foram investidos muitos milhões de euros, ou seja, foram remodeladas ou construídas as Estações de Tratamento de Águas Residuais (ETAR), as estações elevatórias de águas residuais (EEAR) e, construídos muitos quilómetros de emissários para as águas residuais.

Esta nova realidade só foi possível com a “torneira aberta” dos fundos estruturais e, claro, dos nossos impostos. A “fatia” que Portugal gastou nestes últimos 23 anos – 1993 a 2016 – para a infraestruturação e modernização deste setor foi de, aproximadamente, 10 mil milhões de euros sendo que, muito desse investimento foi cofinanciado ao longo dos diferentes quadros comunitários de apoio – QCA I (1989 a 1993); QCA II (1994 a 1999); QCA III (2000 a 2006); QREN (2007 a 2013) e Portugal 2020 (2014 a 2020 – ainda a decorrer).

 

“Hoje”

Neste trajeto de infraestruturação e modernização muitos erros foram cometidos. Admito a existência de decisões menos bem conseguidas e, por consequência, algumas centenas de milhões de euros tenham corrido pelo “cano abaixo”.

À data de hoje, e com a preciosa ajuda da Entidade Reguladora dos Serviços e Águas Residuais (ERSAR) conseguimos ter uma visão da evolução positiva que os serviços de abastecimento de água às populações e do saneamento das águas residuais tiveram, e têm, na sociedade portuguesa.

A ERSAR é o regulador do setor dos serviços de abastecimento de água e de saneamento das águas residuais que, tal como o setor das águas, foi crescendo com a experiência de trabalho ao longo destes últimas décadas. Criada a 30 de agosto de 1997 apenas com a vertente das águas residuais, viu a partir de 2004 os seus poderes regulatórios alargados para a qualidade da água de consumo humano.

Se for uma pessoa interessada por este tema, recomendo a leitura do Relatório Anual dos Serviços de Águas e Resíduos em Portugal – RASARP 2016 -, publicado no site da entidade reguladora e conseguirá compreender minuciosamente a evolução dos indicadores neste setor.

Como certamente muitos dos leitores não terão tempo para ler o documento, gostaria que fixassem dois aspetos que demonstram o desenvolvimento positivo do setor: 1) evolução de 50% em 1993 para 99,84% em 2015 de água “segura” e de boa qualidade para consumo humano – indicador n.º AA04 – e, 2) a possibilidade do cidadão de uma forma expedita, através de uma aplicação da ERSAR, saber qual a qualidade da água no seu concelho. Muito interessante e útil – AQUI.

Mas o reconhecimento pelo trabalho deste setor, particularmente no abastecimento de água, não é só monitorizado, fiscalizado e avaliado pelas entidades nacionais. A “cereja no topo do bolo”, ocorreu no dia 3 de fevereiro de 2017, quando a Direção-Geral do Ambiente, da Comissão Europeia (EU), na publicação dos relatórios de avaliação da aplicação da legislação ambiental da UE para os 28 países, afirmou, na página 5 que, “as melhorias de qualidade dos sistemas de abastecimento de água potável, registadas na última década atingiram em Portugal um nível de excelência” sendo, por isso, exemplo para os restantes membros da UE. De facto, tenho de destacar novamente: “Portugal atingiu o Nível de Excelência”. Orgulho.

 

“Amanhã”

Devo sublinhar, no entanto, que nem tudo é um “mar de rosas”. Existem falhas e preocupações que devem estar na agenda política nos próximos tempos. Refiro-me, em especial; 1) à necessidade de uma estratégia forte e sólida na manutenção das infraestruturas existentes, para não cairmos na realidade dos EUA e Reino Unido; 2) um forte investimento na área da monitorização e investigação; 3) uma aposta forte na economia circular, mantendo sempre os mesmos níveis de produtividade das infraestruturas – veja-se o exemplo da ETAR da Guia -; 4) à substituição de condutas de águas e emissários de águas residuais em redes problemáticas cuja manutenção começa a ter um custo demasiado alto; 5) na construção de redes “pluviais” e 6) incutir nos decisores locais o exemplo de Lisboa apostando fortemente no combate das perdas reais de água que continuam a ser um problema muito significativo em Portugal. Para este último ponto recomendo, por exemplo, a ferramenta de trabalho da EPAL designada de WONE – Water Optimization for Network Efficiency. Esta, para além de já ter sido distinguida em várias ocasiões, ajudou à redução das perdas na nossa capital. Não conhece? Espreite AQUI.

Por fim, e num tom de desafio para as entidades competentes, seria vantajoso a criação de um mecanismo nacional de Gestão dos Ativos inserido no Ministério do Ambiente ou na entidade reguladora que, de uma forma rigorosa, centralizada, profissional e transparente, assegurasse a inventariação uniformizada dos ativos públicos, adquiridos ao longo dos últimos anos para o setor. Pois, só conhecendo o que comprámos “ontem”, sabemos o que temos “hoje”, precavendo de uma forma célere e assertiva o “amanhã”.

Terminada esta viagem pelo “ontem”, “hoje” e “amanhã” uma certeza tentei clarificar: Portugal, ao longo dos últimos anos, através de um forte impulso dos fundos estruturais melhorou a qualidade de vida da sua população. Está patente, não só nos resultados alcançados ao nível da qualidade da água para consumo, como ao nível da cobertura dos serviços de abastecimento de água e de tratamento de águas residuais.

Problemas iguais aos ocorridos nos verões quentes de julho de 1913 e agosto de 1925 na capital de Portugal, e de 1973 na humilde aldeia da Dona Maria Beatriz, felizmente, são “águas passadas”.