O testemunho pode ser definido como um processo ou método através do qual os sobreviventes edificam uma representação narrativa lógica do episódio traumático, embora, e em abono da verdade, a mesma seja algo fragmentária e imprecisa. Logo, o testemunho pode ser degustado como uma forma importante de relacionamento com o passado que possibilita “laborar” com as ininterruptas e pertinazes intromissões repetitivas do acontecimento traumático no contemporâneo. Será que o testemunho não constitui um processo de congraçamento entre dois mundos, ou seja o do passado incivilmente arruinado e o presente assolado? Será que estes dois mundos não são totalmente dissemelhantes? Será que os mesmos não continuarão a ser diferentes?
O testemunho jamais pode extinguir ou refutar o infortúnio, o medo e a devastação, permitindo desguarnecer paulatinamente a reminiscência traumática ao outorgar uma configuração e uma disposição narrativa aos acontecimentos ocorridos. Neste contexto, podemos seguramente asseverar que se desmascara ou se desmistifica a comunicação proposta como autêntica e ímpar, passando a analisar-se e a explorar-se, por intermédio da linguagem, os efeitos da guerra na “noologia” ou no psíquico do sujeito. Será que não é fundamental observar e analisar as sensações, os sentimentos e os estados de espírito motivados e espertados pelo trauma da guerra? Será que não é importante compreender como os mesmos são apresentados e exteriorizados no dia-a-dia? Será que sentimentos mergulhados em trajes de constrição, de opressão, de isolamento, de privação afectiva e de desadaptação ao próprio “berço” não constituem conjunturas que podem estar consolidadas no trauma? Será que não é determinante interpretar as metáforas e as comparações que desfilam nas narrativas? Será que não é essencial decifrar os balanceamentos entre o presente e o passado? Será que não é fulcral compreender a decomposição das imagens fantasiadas, bem como a fragmentação da identidade do indivíduo? Será que a fragmentação da identidade não declara o sujeito sobrevivente e vítima “improrrogável” da guerra? Será esse sujeito, em diversas circunstâncias, não se sente morto em vida? Será que o homem, de modo amiudado, não se metamorfoseia em prisioneiro das suas próprias lembranças e memórias?
Escrever sobre narrativas de guerra consiste, numa fase primitiva, em degustar a experiência de guerra tal como é vivida ou contemplada por um determinado sujeito. A guerra acaba por constituir um trauma vivido. Realçar, e no âmago de um cenário de guerra, que as experiências dos homens, das mulheres e das crianças são vividas em formatos substancialmente diferentes. Logo, é totalmente incorrecto asseverar que essas experiências devem ser relatadas de modo idêntico. Será que quando abordamos o tema trauma não devemos especificar as diferenças entre homens, mulheres e crianças? Será que não é fundamental realizar uma reflexão minuciosa acerca dos efeitos do trauma sobre “indivíduos diferentes”, reverenciando, desse modo, a riqueza da multiplicidade humana?
O trauma constitui uma experiência muitíssimo enérgica e intensa do real que parece impossível de ser simbolizada ou representada. O “trauma de guerra” ou a “neurose de guerra” constituem uma espécie de distúrbio, de desassossego ou de perturbação que atormentava e flagelava soldados e civis, directa ou indirectamente, embrulhados com a guerra. Foi durante a Primeira Guerra Mundial que as investigações e os estudos sobre a origem traumática da neurose foram retomados. Esta conjuntura possibilitou alvorotar as autoridades governamentais para um encaminhamento ético e moral ao serviço dos indivíduos atingidos por tal neurose. Salientar, igualmente, a implantação gradual da psicanálise e a forma como a mesma influenciaria a conspecção psiquiátrica das análises relativas às neuroses de guerra. Será que não foi importante destacar a dimensão individual da vivência do trauma de guerra?
Os seres humanos vivenciam os acontecimentos em formatos diferentes, pelo que é mais que lógico reflectir e acreditar que as mulheres experienciam o trauma de uma forma distinta da dos homens e da das crianças. Neste entrecho, podemos certamente afirmar que o estilo ou o formato que as mulheres empregam para narrar o trauma vivido também pode ser contemplado como único. Grafar sobre um determinado trauma de guerra é abordar a experiência individual da existência, em inúmeras circunstâncias arrepiante e angustiante devido fundamentalmente à contiguidade com a morte. Será que para escrever sobre uma ocasionada guerra não é necessário conhecer aquilo que é estranho aos sujeitos? Será que a escrita do trauma de guerra não pode ser inquietante, íntima, perturbante e “desconhecida”? Será que o conhecimento e a experiência individual não alcançam constantemente destaque e relevância? Será que a literatura não agasalha uma função preponderante na transmissão e na disseminação desse legado individual? Será que não é no momento da morte que o saber, o conhecimento, a sapiência e a existência vivida do homem arrogam uma configuração transmissível e propagável?
O trauma pode ser degustado como um acontecimento da existência do indivíduo que se “determina” pelo grau de intensidade; pelo nível de incapacidade em que o sujeito se encontra para reagir ao mesmo de modo conveniente e apropriado; pelos índices de transtorno e de desorganização que promove; e pelas consequências patogénicas persistentes que desenha na estruturação ou na organização psíquica. Todas as vítimas de guerra acabam por ser marcadas pelas feridas que transportam. Salientar que essas feridas não eram forçosamente feridas físicas, algumas eram feridas “mudas” no coração e na mente. Será que as feridas, a tirania, a dor, a tristeza e o luto não constituíram condições importantes para a significação da palavra guerra? Será que o caminho natural do homem, ao lidar com memórias pungentes, não é precisamente o de tentar esquecê-las ou evitá-las? Será que os traumas ao serem coarctados durante o dia, não se manifestam mais durante a noite sob a forma de insonolências, de pesadelos, de apoquentações, de receios e de outras perturbações psicossomáticas? Será que a psicossomática não pode ser definida como uma ciência interdisciplinar que administra diferentes especialidades da medicina e da psicologia, com a finalidade de observar e analisar os resultados de agentes sociais e dos factores psicológicos, sobre processos orgânicos e basilares do corpo, e sobre a comodidade das pessoas? Será que não é fundamental, e por oposição ao princípio da repressão, dar oportunidade ao “paciente” de falar das suas experiências? Será que não é crucial, mais do que expor as memórias de guerra ou de ter uma atitude baseada na concentração exaustiva do pensamento nessas memórias, enfrentar as memórias de guerra? Será que essas memórias não estavam, em diversas ocasiões, acopladas a sentimentos de culpa, de cobardia, de fraqueza, de remorso, de pudor e de ausência de identidade? Será que se as memórias de guerra não forem devidamente amolecidas não voltam amiudadamente sob a forma de sonhos, pesadelos, convulsões, paralisias, contracturas, histerias e outras desacomodações?
A guerra envolvia elevadas doses de sofrimento humano e delatava os equívocos políticos e as mentiras confeccionadas pelos senhores da guerra que de modo totalmente injustificado a prolongavam. Infelizmente os traumatizados de guerra não “terminaram” com o fim da guerra, ou seja ninguém conseguiu que as intensas e pardacentas lembranças da guerra fossem arquivadas na “caixa das memórias definitivamente esquecidas”. A influência da guerra continuou a controlar todas as meditações e todos os comportamentos. A guerra, com inúmeras famílias aniquiladas, patenteou múltiplos desmoronamentos materiais e humanos. Na guerra não existem vencedores, somente derrotados, uma vez que há homens mutilados física e psiquicamente de ambos os lados da “barricada”.
Felizmente no campo da psiquiatria começaram a metamorfosear-se posturas, disposições e procedimentos não só no reconhecimento dos traumas de guerra, como também no seu tratamento. Será que revisitar as superfícies de guerra ou de trauma, de modo real ou ficcional, não constitui uma configuração de escoamento ou de “amenização” em relação a uma “adversidade” interna? Será que a perfilhação dessa configuração não abrevia os sentimentos de culpa, de falha, de arrependimento e de sofrimento? Será que esta conjuntura não empurra o sujeito para a narração? Será que a experiência traumática representada em literatura ou em arte não serena o sujeito? Será que os textos produzidos não são um autêntico testemunho do sucedido para as gerações futuras? Será que não é fundamental edificar um vigoroso compromisso entre os indivíduos que contam e os indivíduos que escutam? Será que desta forma não se estabelece uma espécie de pacto de responsabilidade partilhada? Será que a literatura de guerra, nomeadamente a partir da Primeira Grande Guerra, não se assume como uma literatura contra o esquecimento? Qual é o grau de complementaridade entre a memória individual e a memória colectiva? Será que as sociedades acabadas de sair da guerra, na medula das suas formalidades de reminiscência e de esquecimento, não deixam isolados, unicamente com os seus fantasmas, aqueles que são “embaixadores” das experiências de guerra? Será que os mesmos não vão permanecendo entre um luto impossível de concretizar e um bramido que acaba por constituir o trauma?