De referir que a valentia não se alcança, ou é mais fácil de alcançar, quando tudo corre bem.

Podia limitar-me a escrever que a Capeia de Aldeia do Bispo, realizada no dia 12 de Agosto e em honra do Menino Jesus, me encheu a alma porque na verdade foi uma Capeia para “Vergas”. Sentia-se no ar “as tardes de maravilha”, conforme exalta o hino da minha querida e amada Terra.


Num período em que se assiste a mais uma despudorada e traiçoeira ofensa à nossa identidade. O texto recentemente publicado no jornal “Público”, a propósito da morte de um boi na espera do Forcão, não foi apenas um ataque às gentes do Soito, mas sim um golpe vil e sanguinário a toda a Raia. Quis, quero deixar o meu testemunho da galhardia de como os jovens de Aldeia do Bispo esperaram os bois, de enorme trapío, da ganadaria José Manuel Duarte (Fininho).


De referir que a valentia não se alcança, ou é mais fácil de alcançar, quando tudo corre bem. Por essa razão sensibilizou-me quando aconteceu um dos nossos jovens tombar à galha e se ergueu imediatamente, e todos, imbuídos de uma serenidade e determinação impressionantes, pegaram ainda com mais garra ao Forcão. Não esqueço o quarto boi da tarde… que boi! O rasgão na t-shirt do André Moreiro, resultado da queda, foi uma fresta que entreabriu as nossas emoções e cada um de nós colocava um pouco da nossa alma naquele rapaz.


Desta essência se fez o povo da Raia, porque se cobre de igual glória aquele que cai e se levanta de novo, traçando, desse modo, este sentimento inexplicável que só nós sentimos… e que temos dificuldade em partilhar, não porque se queira, mas porque simplesmente não se consegue explicar a quem não comunga deste nosso “destino” e “amor”.


Embarga-se a alma quando recordo aqueles que tombaram para sempre, embebidos no pó das praças da Raia, em alguns casos porque os conheci e noutros porque me foi passado esse testemunho pelos meus antepassados.

O Eduardo Franga de Aldeia Velha (1975); o Zé Minhoto da Lageosa (1995); o Júlio Ferreira (1974) e o meu primo Tó Zé Serra (1997) ambos de Aldeia do Bispo. Aconteceu… hoje, provavelmente seria tudo diferente, os tempos são diferentes. Mas será que as mortes deles foram em vão? Volvendo aos jovens, será possível não reparar no Miguel Serra a esperar à galha o boi da prova?


Nestas palavras, tolhidas pela emoção e dirigidas ao Miguel e ao Bruno Serra, filhos do Tó Zé Serra, não tenho qualquer tipo de hesitação em afirmar que o pai, quem o conheceu sabe que isto é uma verdade cristalina, teria um orgulho, um amor tão profundo quando contemplasse qualquer dos filhos à galha do Forcão!!!


Todos pagaram com a própria vida o amor que tinham às suas raízes identitárias, resta a cada um de nós, até porque lhes devemos isso, perpetuar esse tributo, pois na realidade eles fazem parte da nossa memória colectiva. Desliguem as televisões e os telemóveis, e à sombra das noites quentes de Inverno, à lareira, repliquem e transmitam, junto dos mais novos, que estes homens são mais do que lendas, pois estão vivos na memória de cada um de nós e, sem eles, a nossa identidade não seria seguramente a mesma. Foi em vão?


Caía a penumbra, chegada a hora do desencerro, e o gosto amargo deste ano terminarem os bois e os cavalos em Aldeia do Bispo. Na verdade, e naquele preciso momento, as gentes da nossa Raia fundiram-se. Mirei a silhueta da “Xalma” em Espanha, onde tudo começou com os bois da Ginestosa… e tudo fez sentido, como se eu próprio voltasse à origem da nossa história.


Dedico este texto não só àqueles que aqui evoquei, mas também a todos aqueles que feneceram nas nossas praças.