Agosto de 1996!
Recordo como se fosse hoje, a incontida alegria, o enorme orgulho e o sentido de honra que os meus pais e avós sentiram: o neto e o filho servia o Menino Jesus, enquanto mordomo da Capeia de Aldeia do Bispo.
As memórias atropelam-se: o corte do forcão; o encerro; o rufar do tambor; o “passeio”; o “bandear da bandeira”; a “espera” do primeiro boi da tarde; e o olhar intenso e açucarado das moças. Recaía sobre os meus ombros uma enorme responsabilidade e sentia o pulsar da adrenalina própria da juventude. Era e continua a ser, face ao código de conduta das nossas gentes, um ritual que simboliza a transição da meninice/adolescência para a “vida adulta”. Hoje, decorridos mais de vinte anos, inunda-me a alma o sabor doce da nostalgia e turva-se a vista pejada de saudade…!
Também o sentimento da responsabilidade! Por mim! Pelos meus antepassados! Por todos nós! Este recanto do território raiano, a que chamamos “Raia” e que nos moldou a todos, deu-nos tudo aquilo que fomos e tudo aquilo que somos.
Sente-se o perigo! Não dos bois, que esses já conhecemos e amamos, mas dos homens, daqueles que, firmados na sua altaneira arrogância intelectual, atacam a festa brava. É fundamental que os povos da “Raia” alcancem e compreendam que destruída a festa brava, todas as tradições taurinas, que pontuam o nosso País, são colocadas em causa e em crise, e, neste particular, a nossa Capeia Arraiana.
O primeiro passo, por parte dos arrogantes intelectuais que atacam a festa brava, assenta na destruição da corrida de touros portuguesa clássica, para, e a partir daí, aniquilarem, de modo progressivo, as demais tradições. Na verdade, revela-se evidente a interdependência entre as diferentes manifestações taurinas, porque sem a corrida de touros à portuguesa, acabavam, em grande medida, as ganadarias e, por maioria de razão, simplesmente desaparecia o elo essencial à nossa expressão enquanto povo: os touros ou os bois, como lhes quisermos chamar.
A estratégia adoptada pelos intelectuais e fundamentalistas da treta causa-me imensa repulsa e tristeza, mas reconheço que a mesma é inteligente e simultaneamente cobarde, porque, na realidade, eles não nos conseguem enfrentar. Infelizmente é uma questão de tempo até a nossa identidade ser também vilipendiada! Urge reflectir e agir!
Tratando-se da nossa identidade, é fundamental assumirmos claramente que a Capeia Arraiana não se confunde com um qualquer espectáculo. O Bloco de Esquerda (BE) e o Partido das Pessoas, dos Animais e da Natureza (PAN), acompanhados por densos contextos de desconhecimento e por muitos “urbanos”, entendem que a nossa Capeia, ainda que bárbara, é um espectáculo em tudo igual a uma qualquer peça de teatro no Tivoli ou a uma sinfonia no Centro Cultural de Belém. Puro engano! Estão redondamente equivocados!
Os espectáculos que esses senhores assistem no Teatro Tivoli ou no CCB, que naquele contexto também sei apreciar, não passam de espectáculos que se esgotam naquele momento. O que esses senhores não sabem é que a Capeia Arraiana, para nós raianos, é a nossa alma identitária!
Esta alma que não se explica, e sabendo que todos os raianos percebem ou sentem isto tão facilmente, também é saciada quando me desloco à Aldeia Velha, aos Fóios, aos Forcalhos, ou a qualquer aldeia irmã da raia, porque junto dos meus, que são todos vocês, também sou eu que me revejo!
Num ritual que se repete ano após ano, “sentimos” as investidas dos bois, ouvimos o som da galha a rachar, e, com um “vaso de vino” à mistura, partilhamos e comungamos a nossa maneira de ser. Ao fim da tarde, quando já escurece e após o desencerro, “picados” pela nossa rivalidade, própria de quem ama a sua terra, contabilizamos e comparamos os bois que melhor marraram. No final, em boa verdade, há uma estranha sensação, até nostálgica, que nos une, os da “terra” e os de “fora”, sempre irmanados pelo mesmo sentimento, um sentimento feito da argamassa dos que já não estão entre nós. Afinal “cumprimos” a nossa identidade!
Os anos passam, mas mesmo com todas as mudanças a que o Mundo assistiu a Capeia resiste, projectada no testemunho resiliente que há em cada um de nós e que forja a memória colectiva, recordada nas tardes das Capeias, mas também à luz do crepitar das lareiras que povoam as nossas aldeias, porque as Capeias são isso mesmo, vividas todo o ano, alimentadas pela terna recordação dos feitos e nalguns casos, no limite, dos que tombaram nas praças da raia.
Se matassem a Capeia Arraiana, nem os bois seriam verdadeiramente livres, e a raia, que somos todos nós, morreria. A raia é vida, mas sem identidade e sem memória findaria! Eis, portanto, que chegou o momento de cerrarmos fileiras, pois está nas nossas mãos, e de forma colectiva, escrever o passado do nosso futuro!