No princípio Deus criou o trigo e as uvas.
Os caçoilos de barro eram informes e vazios e as trevas cobriam o abismo gastronómico. Então fez-se luz e o espírito dos aromas e sabores pairou sobre Adão, quando aceitou a maçã do conhecimento que Eva lhe ofereceu e soube como fazer o pão. Mas padeciam os humanos ventres ao ingerir frutas, grãos, bagas e legumes crus, pelo que as cavernas se encheram com os gemidos das filhas de Eva: “As vitualhas que caem nas labaredas ficam macias. Façam fogo, para tratarmos os alimentos”. Os homens escutaram e atenderam os seus lamentos e fizeram lareiras, onde as ancestrais mães elaboraram comidas. Todos viram que eram boas e separaram as do dia, da noite. Chamaram à do dia, almoço e à da noite, jantar.
Foi o primeiro dia.
E as mulheres disseram: “Os filhos e filhas do homem necessitam mais mantimento. Queremos carnes”. E os homens foram caçar. Embora sedentos, após longas caminhadas perseguindo as velozes presas, evitavam os mananciais das feras, pois a lei dizia:” Não beberás da água inquinada pelas bestas”. Então os menos dotados para a máscula arte, recolheram uvas e fizeram vinho, que trocavam por caça em abrigos a que chamaram tabernas. Os caçadores beberam, mitigaram a sede, tornaram a beber e alegraram-se.
Foi o segundo dia.
Com tanto vinho sentiram azia nas panças e alvitraram, que a bebida sem alimento era um desconsolo. Os taberneiros ouviram estes queixumes e providenciaram pedaços de vaca e batatas fritas, para refrigério dos famélicos caçantes. Todos acharam que era bom e comeram bifes e mais bifes, tantos como estrelas há no firmamento. Então os mais ávidos exigiram ainda: “Queremos temperos e ovos com a carne”. E assim se fez. Os taberneiros deitaram pimenta, puseram um ovo a cavalo sobre a carne, cobraram mais pelo preparado e mudaram o nome das tabernas para “casa de pasto”.
Foi o terceiro dia.
As repetições das ementas de bife com batatas fritas, em todas as casas de pasto e a todas as refeições, enjoaram os palatos e nausearam as papilas, pelo que os homens intimaram os tasqueiros: “Façam comida variada como a de nossas esposas, mães e avós. Queremos feijoadas, leitão assado, ensopados de borrego, frango de cabidela, migas, açordas”. Outros ordenaram: “Sardinhas assadas, salada de atum, polvo á lagareiro, arroz de marisco, bacalhau à Gomes de Sá”. Todos acharam que era bom, passaram a chamar ás tascas, restaurantes, os donos louvaram e os clientes lamentaram os novos preços e intitularam o estilo de “Cozinha Regional”.
Foi o quarto dia.
Mas nem só de bom pão vive o homem, também carece de ramboias com bom vinho. Fartos das zurrapas que ingeriam, os clientes pediram caldos enológicos menos avinagrados, pelo que os escanções substituíram as mistelas de confeção artesanal e de adegas rascas por reservas, grandes escolhas e seleções especiais. Para acompanhar vinhos tão esmerados, confecionaram delicadezas com sabores exóticos de outras paragens, tais como chateaubriand, rosbifes, carpacio, paelha, sushi e molotov, que a globalização e os cartões de crédito tudo propiciaram. Sobreveio um grande lucro e os tasqueiros concluíram que isso era bom, mesmo muito bom e apelidaram tais comidas de “Cozinha Internacional”.
Foi o quinto dia.
Não saciados com tanto lucro, os restauradores engendraram novos métodos para esmifrar os clientes. Trocaram as velhas instalações por requintados recintos, as antigas manjedouras por mesas minimalistas, as toalhas aos quadrados deram lugar a veludos, os pratos de barro foram cambiados por delicadas porcelanas e os canecos de vidro grosso, por cintilantes copos de pé alto. Penduraram nas paredes umas borradas a imitar naturezas mortas, debitaram uns sons indistintos a que chamaram música ambiente e remataram com um golpe magistral: trocaram as fartas doses de outrora por minúsculas amostras de comida, que apelidaram de requinte sibarítico. Os tasqueiros cobraram quantias descaradas aos poucos clientes que podiam pagar e rejubilaram. Sentiram-se resplandecentes, pelo que patrocinados por uma grande marca de pneus, atribuíram às suas tascas uma classificação baseada em estrelas e chamaram aos cozinhados “Gourmet” e “Nouvelle Cuisine”.
Foi o Sexto dia.
No fim do sexto dia os proprietários contemplaram a sua obra e acharam que era boa, mas viram que todos estavam muito fatigados. Esvaziaram pois as caixas, recolheram a maquia e ordenaram o descanso, santificando o dia seguinte com a instituição da folga. Então, todas as criaturas da restauração suspenderam o seu labor. Os cozinheiros apagaram os fogões, branquearam os tachos e foram repousar para junto das esposas. Os empregados novos arrumaram as mesas, penduraram os aventais e foram cansar-se com as namoradas. Os velhos chefes de sala colocaram na porta uma tabuleta que diz: “Encerrado para descanso do pessoal” e ausentaram-se solitários. Os barmans seguiram o exemplo e escreveram na sua tabuleta, “Encerra hoje, para descanso dos fígados dos estimados clientes” e fecharam.
Foi o sétimo dia.
Só os clientes não folgaram no sétimo dia indo deambular para “Foruns” e Centros Comerciais, acotovelando-se em tascas pífias permanentemente abertas, que não distinguem o almoço do jantar, onde enfardam apressadamente umas mixórdias normalizadas, que tentam imitar comida. Aqui é o reino de tasqueiros de terras longínquas e nomes bárbaros, que nunca se vêm, que não se preocupam com clientes, nem empregados e que ignoram completamente o folguedo do sétimo dia.
Estamos á beira do fim. Não haverá mais dias.