As substâncias ingeridas, a forma como são ingeridas e os contextos adjacentes constituem condições fundamentais para a compreensão das próprias substâncias.

Não são as particularidades literalmente químicas ou as consequências fisiológicas das substâncias que ditam se um produto deve ou não ser consumido. As substâncias podem fornecer nutrição, e, desse modo, conservar a actividade fisiológica normal do nosso organismo. Outras podem proporcionar satisfação ao paladar e algumas podem reinstituir a normalidade fisiológica do nosso sistema. Todavia, também existem aquelas que nos podem transferir deleite, transformando significativamente o nosso estado de compreensão. As denominações outorgadas às matérias acabam por ter um papel fundamental, uma vez que as mesmas sugestionam e desbastardam a actuação. Será que as regras não precedem a existência de núcleos desviantes? Será que os problemas públicos não acabam por ter maior suporte nas convergências de desejos colectivos do que nos efeitos das conjunções objectivas?

Quando falamos em bebida ou comida pensamos na qualidade e quantidade incluída na embalagem, na pigmentação do produto e provavelmente nas circunstâncias de conservação. Contudo, quando apelidamos uma determinada substância de “droga” sobrevêm duas possibilidades, ou seja podemos interpretá-la como medicamento, ou como algo que jamais dever ser ingerido e que o Estado necessita, o mais depressa possível, circunscrever. Será que não é somente depois da edificação social de uma norma que desponta a fronteira indeterminada, mas activa e intensa, entre aquilo que está correcto e incorrecto? Será que os cânones não sobressaem maioritariamente de manifestações vagas e universalizadas?

Existindo irresolução sobre a actuação adequada, alguns valores e apreços mais importantes são seleccionados, fundando-se, a partir dos mesmos, normas específicas. Devido à indispensabilidade de fluxos de movimento mais definidos na realidade corpórea, são instituídos e imortalizados regulamentos às realidades e vivacidades diárias. O projecto ético usualmente necessita alcançar o domínio Estado como meio de conquistar legalidade, autenticidade e robustez injuntiva sobre as correntes de actuação dos cidadãos. O sistema de planeamento e estruturação social da realidade, tendo em conta a elaboração de doutrinas sobre a responsabilidade causal e o comprometimento político, deve terminar com a concentração e convencimento da opinião pública de que determinado fenómeno necessita admitir intromissão por parte do Estado.

Algumas drogas, assim como certas tecnologias, somente melhoraram o desempenho mental dentro de uma tela controlada por um laboratório. A realidade, todavia, é seguramente muito dissemelhante. As substâncias não têm o mesmo efeito em todos os indivíduos. Os resultados colaterais mais preocupantes não são os de cariz físico, mas sim intelectual. Uma droga usada com o objectivo de melhorar a memória pode provocar um autêntico e desgostoso entupimento do cérebro. Existe também o risco do vício. Será que nos estudos efectuados sobre as smart drugs não há fragrâncias que apontem para possíveis dependências psicológicas? Será que os cidadãos vão ser obrigados a viver num ambiente em que as concepções, pensamentos, interpretações, agitações, emoções, sentimentos e procedimentos são incessantemente transformados por novas cápsulas boticárias? Será que a farmácia deve ser unicamente entendida e contemplada como uma área para comprar medicamentos?

A natureza pública do problema inventaria-se tanto com o vigor da lei formulada, como com a interiorização na opinião pública de uma renovada definição do problema que pode não ser obrigatoriamente a mais autêntica, a mais esclarecida ou a mais inclusiva. É necessário uma significação harmonizável com a capacidade cognitiva média e os apetites éticos fluentes. A dissertação definidora habitualmente patenteia uma liquefacção entre componentes científicos e retóricos, bem como entre materialização e ideologia. Embora a maior parte da população nunca tenha tido experiências corpóreas e consistentes com a realidade e multiplicidade das exteriorizações do fenómeno, elas passam a compartilhar a definição que apreciariam escutar e que têm capacidade de compreender. É fundamental saber quais são os prognósticos de uso e as ameaças que efectivamente oferecem as smart drugs.

A configuração objectiva da significação do fenómeno, enquanto inquietação pública, advém da escolha, e disseminação, de casos em que desfilem as telas de subordinação e compulsividade compactas, e de ocorrências em que a droga está coligada à delinquência, iniquidade e transgressão. Problemas corpóreos e amiudados referentes ao consumo excessivo de drogas deviam, em maior escala, ser incutidos na opinião pública como sendo a conclusão inevitável de experiências com substâncias alheias às indicações da “medicina constitucional”. Contemporaneamente anuncia-se que um só comprimido fornece inteligência, concentração e memória. A “prescrição” parece sedutora, porém a deglutição dessas drogas é, no mínimo, pura imbecilidade. O uso das smart drugs metamorfoseia a “topografia” natural do cérebro, podendo acarretar resultados secundários altamente pardacentos.

Na Internet e nas smart shops é possível, e simples, comprar drogas legais. Na verdade, ninguém sabe ao certo quais os efeitos nefastos que as mesmas aconchegam. Nos últimos anos, o número de novas drogas a despontarem no mercado negro e no comércio lícito tem aumentado significativamente. Será que não existem cada vez mais pessoas que não resistem ao consumo das smart drugs?

Qualquer substância, até ao momento em que seja incorporada na listagem de drogas ilícitas, é legal. Em Portugal é fácil adquirir uma droga legal apesar de desconhecida e potencialmente perigosa. Infelizmente, o período de tempo que as instituições públicas necessitam para analisar cada substância, com a finalidade de ser decretada uma deliberação sobre a sua interdição ou permissão, não tem escoltado a celeridade do aparecimento destas novas e renovadas drogas. Será que a presente política proibicionista não tem impulsionado a aparição no mercado destas substâncias “delinquentes”, bem como o consumo das mesmas?

Existem inúmeros automatismos saudáveis para aguilhoar o bom desempenho do cérebro humano. Perfilhar uma alimentação mais benigna e contrabalançada; controlar os índices de stress; movimentar o corpo; redigir listas de objectivos; exercitar a mente através de actividades intelectuais diferentes; encontrar e apresentar correctamente as dificuldades; dormir “comodamente”; adestrar a capacidade de concentração; treinar as memorizações; ter uma vida social normal; e fazer exercícios de relaxação, constituem contextos que acabam por facultar maiores indicadores de eficácia no armazenamento de novos conhecimentos. Será que o uso das smart drugs não proporciona contextos de mudança na nossa personalidade, comportamento e temperamento? Será que é possível homogeneizar a capacidade cognitiva humana?

Em síntese, podemos seguramente afirmar que o consumo das smart drugs metamorfoseia o processo de raciocinar. A receptividade e flexibilidade dessas drogas descerram uma ampla superfície para as discussões éticas e sociais. Este texto não só constitui mais uma exteriorização de que a política de combate às drogas é ineficiente e franzina no seu propósito de desarraigar as drogas do planeta, como também contribui para a apresentação cristalina dos sulcos adjacentes ao consumo de drogas.

Por decisão pessoal, o autor do texto não escreve segundo o novo Acordo Ortográfico.