Quantos de nós já não assistimos, junto às “calampeiras”, ao reencontro de colegas de escola na Guarda, 30, 40 ou 50 anos depois?

O périplo pelas Capeias incrustadas ao longo da linha da Raia do Sabugal, espraia-se, sucessivamente, ao longo do mês de Agosto, impele os Raianos para esta verdadeira “migração” anual, dá cor ao nosso imaginário, pincelado pelas recordações e emoções, que revisitamos e que acrescentamos ano após ano.


Quantos de nós já não assistimos, junto às “calampeiras”, ao reencontro de colegas de escola na Guarda, 30, 40 ou 50 anos depois? Ou que partilharam as savanas da Guiné ou de Angola, na “Guerra do Ultramar”? Quantas lágrimas já não tiveram vontade de embeber o pó das nossas praças?
Um olhar mais atento descortina no rosto daquele jovem que eu não conhecia, os traços do amigo ou do primo que já “partiu”, cerram-se os dentes, entesam-se os músculos da testa, numa indisfarçável comoção…! As palavras amassadas, num sentimento amargurado, soltam-se titubeantes: Então és o filho do António da “Ti Olímpia”? Não sabes quem sou? Face ao silêncio, e adivinhando a resposta, foi mais fácil estreitá-lo num abraço, colocando neste gesto simples e natural a crença de que há vidas que nunca nos abandonam!


A Raia abre-se ao mundo, convocam-se os amigos das terras mais próximas: da Bismula ao Casteleiro, de Nave de Haver a Pousafoles, de Navasfrias a Fuenteguinaldo, que não tendo a Capeia entre si, partilham as nossas Capeias, traçadas pela amizade que generosamente irradia entre os palcos e as tabernas junto ao curro!


Quase todos nós já testemunhámos a adesão de gente amiga, famílias inteiras que convidamos para as nossas casas, e que, maravilhada, vê no “encerro” a mais bela introdução que podia existir para qualquer Capeia. O Encerro, cheio de cor e de alegria, é a natureza, sem ruído, que trazemos para o seio das nossas aldeias, numa combinação única no mundo: homens, cavalos e sempre eles, – e nunca sem eles -, … os bois!


Muitos já afirmaram que o modo de estar dos Raianos, maturado no circuito das Capeias, criou um conjunto de relações e códigos de conduta muito próprios, de forte conotação simbólica, reservado, em muitos casos, aos “da terra”, como por exemplo o “passeio das alabardas” ou a “espera ao forcão”, mas, simultaneamente, comprometidos com o princípio, arreigado, de que os amigos e convidados são principescamente tratados, sendo que a uns e a outros, “os de fora”, está-lhes vedado o pagamento de quaisquer “copos”, tradição que, tal como é sabido, motiva muita estranheza e admiração aos forasteiros quando contactam com estas características tão genuinamente nossas.


Recentemente, assisti à exibição de um filme na RTP 2 que mostrava o empenho de um homem, já idoso, do Povo Maori, na sua luta para garantir os valores tradicionais de uma ilha do Pacífico, na sua relação ancestral com as baleias, filme esse que evidenciava “Os Domadores de Baleias”.
A questão está, pois, em saber, se queremos ser, apenas, daqui a 50 anos uma mera memória exótica, como se de um povo “extinto” se tratasse, à semelhança do que já sucedeu com muitas culturas, porque destruída esta ligação íntima dos Raianos à Capeia não são unicamente os bois que desaparecem da paisagem, mas também os Raianos, eclipsando-se, assim, uma cultura irrigada pela bravura e pelo modo aberto, “campechano”, como nos relacionamos entre nós e com os outros, conduzindo-nos para um qualquer documentário de arquivo… “Os Domadores de Bois”!