Escrever ou falar de cenários de guerra e de experiências de combate é recorrer a uma espécie de tabuleiro fenomenológico em que aquilo que denominamos de “condição humana” acaba por ser colocado em causa. Na verdade, e debaixo do “efeito” deste rótulo, os indivíduos apresentam bastantes dificuldades em saber exactamente aquilo que estão a relatar ou a traçar. Salientar que a fenomenologia consiste na observação e na análise de um conjunto de fenómenos, sendo fundamental saber como os mesmos se exteriorizam, tanto através do tempo, como do espaço. Será que a fenomenologia não procura estudar a essência das coisas e o modo como as mesmas são compreendidas no mundo?
Ao abordarmos o tema guerra narramos o indivíduo a recorrer a um conjunto de emoções e de agitações significativamente espaçoso. As experiências de guerra arregimentam todos os envolvidos em paisagens embebidas em pavor, trepidez, horror, vaidade, poder, misericórdia ou compaixão. Será que este conjunto de emoções não pode ser degustado como a janela dos limites que possibilita raciocinar sobre as configurações que separam o humano do inumano ou o misericordioso do desapiedado? Será que não é importante conhecermos a natureza ou a essência daquilo que é convivermos em contexto de humanidade ou desumanidade? Será que as altercações sobre experiências de guerra não se confrontam em determinados momentos e conjunturas? Será que não é relevante equacionar e conhecer as fronteiras do compreensível, da “palavra” e do sentido?
Hitler, por exemplo, foi um monstro cuja desculpa ou perdão não podem sequer ser colocados como uma possibilidade, mas sim como um julgamento abstracto e transcendente que ultrapassa toda a meditação e ponderação humana, bem como todas as categorias de sentido. Numa outra perspectiva podemos afirmar que Hitler foi um homem, sendo até imperioso que se considere a possibilidade do mal e da imperfeição não serem consequência da excepcionalismo transcendente em que se exprimem determinados poderes, mas de uma normalidade e regularidade com as quais comorámos amiudadamente porque as mesmas também desfilam em todos os seres humanos, ou seja em cada um de nós. Será que qualquer uma destas suposições não agasalha a “capacidade” de nos fazer raciocinar acerca da eventualidade da história nem ao menos ser história? Será que a história tem sentido? Será que a mesma aquartela apenas acontecimentos sem clareza e de reduzida compreensibilidade?
A guerra é a manifestação máxima de um arquétipo de percepção do mundo, tendo como alicerce um aglomerado de experiências extraordinárias, devido aos graus de violência que alberga, que acabam por transportar padrões imersos em humanidade ou em inumanidade. Será que determinadas experiências não podem ser saboreadas como um género de buraco negro da história? Será que o reconhecimento de que existem experiências “ecumenicamente” traumáticas, não nos outorga um espelho honesto e autêntico daquilo que pode ser a natureza humana em disposições e circunstâncias extremas?
Na superfície de guerra, a desagregação dos princípios legislativos redunda na vulgarização da violência e da barbaridade encaminhada aos outros, bem como da morte. Esta conjuntura acaba por influenciar, de modo directo, a fronteira das acções que suportam ou arruínam o vínculo entre as Nações. Na medula deste encadeamento tão hostil e pardacento, a experiência traumática encharca o dispositivo psíquico num descomedimento de tensão impossível de assimilar, deixando o indivíduo: mergulhado no trauma e na neuropatia; afastado dos contextos de significação; e prisioneiro da reiteração coerciva do momento ou do estado danífico. Será que não é fundamental a análise rigorosa e abrangente dos sujeitos neurotizados pela guerra? Será que a noção de “neurose de guerra” não está associada ao conceito de trauma? Será que o trauma não é uma forma de violência? Será que o relato do trauma não é a história de um “abalroamento” vigoroso, triste e violento? Será que o trauma não provoca um desencontro com o próprio mundo? Será que o mesmo promove o desenvolvimento, a integração, o equilíbrio, a convivência social e a harmonização entre o indivíduo e a comunidade? Quais são os valores em que se fundamentam as relações humanas?
O vocábulo trauma pode ser definido como a experiência pessoal directa com uma ocorrência que embrulha a morte; a ameaça de morte; a ameaça à integridade física; o ferimento; e a enfermidade grave. A atitude do sujeito perante tal cenário acaba por estar imersa num temor denso e num sentimento de incapacidade de obtenção de ajuda. Será que a conexão entre trauma, reminiscência e representação não é bastante complexa, polémica e “hermética”? Quais são os fundamentos teóricos que nos permitem meditar acerca da produção, da mediação e da vulgarização da memória cultural? Será que existem geografias traumáticas?
Apesar de existir uma espécie de encadeamento de mutualidade entre memória e representação, o mesmo não deve ser cogitado como tranquilo, unanime e duradouro. Salientar que a memória pública nunca pode ser saboreada como sendo homogénea, uma vez que toda a representação do passado é fundeada em correspondências de poder que embrulham antagonismo, conflitos, desacordos e negociação entre conveniências culturais, políticas e sociais. Será que as imagens do passado não podem ser arquitectadas e confeccionadas pelos poderes edificados? Será que as mesmas não são metamorfoseadas em costumes e cravadas numa memória “pública”, oficial e formal? Será que as imagens instrumentalizadas não alicerçam e promovem a legitimação de autoridades e de jurisdições, bem como a consagração de anuências políticas e sociais?
A memória pode ser degustada como um mecanismo de representação que possibilita conceber uma imagem do passado que corresponde a determinadas telas de significação contemporâneas. Estas telas de significação, que funcionam como regimes ou arquétipos de verdade, acabam por definir, em cada momento ou conjuntura histórica, os contextos que devem ser memorados e aqueles que devem ser deslembrados. Portanto, esses regimes de verdade são reptados pela multiplicidade de versões e de interpretações relativas ao passado que desfilam no domínio público, num autêntico itinerário de reacção e de negociação discursiva. Será que a memória cultural não é uma acção que sucede no hodierno, em que o passado é alterado e reeditado de forma ininterrupta? Será que esta conjuntura não acaba por moldar ou afeiçoar o vindouro? Será que a relação entre representação e trauma não é de incompatibilidade e de discordância? Será que os estudos, as teorias e os princípios actuais vinculados com o fenómeno traumático não defendem que o trauma é uma inscrição do passado que “sobrevive” distante da representação?
Na realidade, o trauma não corresponde ao acontecimento violento, marcante ou original vivido no passado por um determinado indivíduo, mas sim às configurações que nunca foram assimiladas e compreendidas no “período de ocorrência”, retornando mais tarde, depois de uma fase mais ou menos longa de incubação, para o escurecer, turvar e toldar. É precisamente no seio da incapacidade de computorizar e de organizar mentalmente o acontecimento traumático e de o transfigurar numa narrativa que habita a sua irrepresentabilidade, ou seja a qualidade daquilo que não se pode nem consegue representar. Será que o trauma não consiste na “matéria” que não se consegue “capturar” através da representação? Será que a representação do trauma não significa ultrapassá-lo e metamorfoseá-lo em memória? Será que os conceitos trauma e memória não são antagónicos? Será que os mesmos, em determinadas circunstâncias específicas e de modo simultâneo, não são “íntimos”? Quais são as principais diferenças entre memória traumática e memória narrativa? Será que a recordação traumática não é fundamentalmente inconsciente, involuntária e descontrolada? Será que a memória, mesmo sendo obrigatoriamente facciosa e defectível, não consiste numa acção de contar uma história, bem como de incorporar as reminiscências numa narrativa organizada capaz de gerar sentido ou significação? Será que a superação do trauma não poderá ser compreendida como a passagem para uma narratividade que estabelece o tempo, ou seja o hiato em que a memória se configura e “corporaliza” com o próprio espaço? Será que a condição mínima da narratividade não é a transformação da situação numa disposição temporal?
O “ilogismo” traumático está profundamente associado ao facto de o trauma ser irrepresentável, contudo para o mesmo ser vencido tem de perfilhar a representação, deixando, nesse preciso momento, de agasalhar a característica da irrepresentabilidade. Portanto, o trauma deixa de ser trauma com a estruturação da representação. Será que através da estruturação, alcançada por meio da representação, não se emudece a robustez e a pujança incessantemente perturbante do trauma?
É seguramente oportuno abordar o tema pós-memória. A pós-memória relata e percorre a conexão que as gerações seguintes àquelas que presenciaram ou testemunharam o trauma colectivo estabelecem com as experiências e vivências da geração anterior, experiências essas que unicamente relembram através de histórias, condutas, imagens, diagramas e procedimentos. Porém, essas experiências foram transmitidas de forma visceral e afectiva aparentando edificarem-se como memórias próprias. Neste entrecho, podemos asseverar que a correspondência da pós-memória com o passado não é verdadeiramente mediada e promovida através da recordação, mas sim por investimento, projecção e concepção imaginativa. Será que o conceito de pós-memória não conjectura que a memória pode ser legada através da representação de histórias, de imagens e de comportamentos, assim como de disposições de investimento, de projecção e de criação imaginativa? Será que o trauma não pode ser transmitido de modo intergeracional?
Em determinadas ocasiões, e pelas mais variadas razões, perfilhamos as experiências traumáticas e, concomitantemente, as memórias dos outros enquanto nossas. É principalmente no âmago da família que as correspondências pós-memória se concebem e desenvolvem. Será que a família, enquanto “aparelho” que interfere ou medeia a memória individual e a memória colectiva, não pode operar num cenário pós-traumático?
As famílias podem ser desagregadas, amedrontadas e assoladas pela violência e brutalidade marcial. Por sua vez, as famílias também podem provocar um conjunto de conflitos internos, de dilemas e de mistérios que descontinuam o sistema de delegação ou de transmissão de memórias entre progenitores e descendentes. Deste modo, podemos seguramente asseverar que o miolo familiar revela-se como uma espécie de superfície na qual as ocorrências traumáticas e a recordação das mesmas são pronunciadas, interligadas, articuladas, “mercantilizadas”, coarctadas ou coibidas, estabelecendo, por essa razão, uma atmosfera propícia para avaliar a forma como os traumas históricos se repercutem nas gerações subsequentes.
Salientar que o cinema assume um papel privilegiadíssimo na disseminação do desempenho ou da prestação traumática, pois o trauma arroga a configuração de sensações ou de sentimentos físicos e visuais em prejuízo de uma narrativa ou de uma explanação de carácter verbal. Será que a recordação traumática não pode ser degustada como uma memória corporal recheada por um aglomerado de imagens espontâneas e momentâneas; de “deslocações” corporais; e de sonoridades? Será que quando os indivíduos convivem com contextos traumáticos não saboreiam um género de formato de horror sem vocábulos?
O mundo do cinema acaba por perscrutar e explorar o temperamento visual e alucinatório da experiência traumática; as expressões pleonásticas; e as diversas formas de sensações corporais. Será que estas condições não podem colaborar para que o passado desponte no contemporâneo? Será que algumas imiscuições pertinazes do passado e algumas recordações traumáticas que se exteriorizam através de actuações e trejeitos reiterados, não espelham uma ferida que teima em não cicatrizar?
A memória pode ser degustada como um mecanismo de representação que possibilita conceber uma imagem do passado que corresponde a determinadas telas de significação contemporâneas.