Na realidade, a morte de uma pessoa estimada e amada acarreta algumas dificuldades para a vida do enlutado, podendo o luto metamorfosear-se em luto traumático.

Existem indivíduos que procuram rememorar e narrar os seus percursos de vida mais intrincados, outros desejam esquecer e não contar as trajectórias traumáticas do seu passado. De qualquer forma, torna-se fundamental para a sanidade das vítimas sobreviventes da guerra ultrapassar os traumas vividos na mesma. Há seguramente indivíduos que agasalham a vontade de voltar ao cenário de guerra com a finalidade de testemunhar e, consequentemente, de desmemoriar as experiências traumáticas vividas. Talvez este seja o método mais eficaz para recuperar a vida “normal”. Logo, é certamente oportuno afirmar que existem múltiplos motivos, fundamentos e factores, alguns de temperamento bastante específico e emaranhado, que promovem o fortalecimento da memória traumática no pós-guerra, podendo a mesma assumir uma configuração individual ou colectiva. Será que em determinadas circunstâncias, o silêncio e a omissão, em relação às experiências vividas, não acabam por edificar a solução que possibilita seguir uma vida sem ressentimento, pânico, tristeza e sofrimento?
É seguramente importante perscrutar sobre algumas reflexões e considerações que embrulham a memória traumática dos enlutados. Porém, torna-se necessário compreender o luto, vocábulo que transporta sentimentos de dor, de sofrimento, de inquietação e de melancolia. Será que o luto não hospeda complexos e inúmeros significados? Será que o mesmo não é rapidamente associado a sentimentos de perda pelo falecimento de alguém? Será que o luto, ao longo da história, não foi contemplado, “imaginado” e vivenciado de diferentes formas?
Na Idade Média, por exemplo, o enlutado era obrigado a exteriorizar o seu sofrimento de perda por um determinado período de tempo, mesmo que a dor já tivesse desaparecido ou ultrapassada. A partir do século XIX, as práticas do luto sofreram algumas alterações, passando os enlutados a manifestar o seu padecimento de modo espontâneo e principalmente através do choro, do desmaio e do jejum. O século XX acarretou, em inúmeras regiões urbanas dos Países ocidentais, o luto insulado, individual, silencioso e sem o negro, este tão presente, desde a Idade Média, na indumentária.
O acto de chorar diante de familiares e amigos até pode parecer vergonhoso e depressivo. As comunidades durante os séculos passados sempre fizeram questão de estar presente, ou seja visitando e amparando os enlutados. Actualmente a sociedade está em múltiplos casos longínqua, talvez pelo receio de não saber expressar correctamente as condolências ou por ter algum género de pudor em manifestar sentimentos de dor. Na realidade, chora-se frequentemente em casa de modo isolado e oculto, distante até da “assembleia familiar”. Esta condição de individualização da dor ligada à perda contribuiu para que a morte esteja associada unicamente ao enlutado, que eventualmente a sente e a vive de forma desajudada. No presente século, a individualização da dor da perda embrulha a vivência de muitos indivíduos e o luto metamorfoseou-se numa espécie de problema. Para a esmagadora maioria das pessoas falar sobre a perda de um ente querido acaba por configurar um cenário impregnado de dor e de infelicidade. Em determinadas situações, e depois de já terem passado algumas décadas, as telas de sofrimento do enlutado pela morte de alguém próximo e amado podem continuar muitíssimo “inflamadas”. Um exemplo dessa configuração reside nos filhos falecidos, uma vez que estes permanecem perpetuamente na memória, no coração e nas comunicações dos pais.
O luto traumático pode ser provocado por devastações, como desastres naturais ou acções terroristas, que atingem quase toda a população de uma determinada área ou comunidade, disseminando na vida dos sobreviventes “momentos” de dissemelhantes temperamentos, como sejam: emocionais; físicos; e materiais. Talvez os efeitos, neste tipo de palcos, sejam particularmente emocionais, pois muitos dos sobreviventes presenciaram o desaparecimento dos seus familiares e amigos. As mulheres ou os homens que perdem o seu cônjuge, mas fundamentalmente os filhos que perdem os pais ou os pais que passam pela morte de um filho acabam por ser as configurações mais favoráveis para ocorrer o luto traumático. Quando o falecimento acontece subitamente, as pessoas demoram bastante mais tempo para deslembrar o trauma da morte, do que quando o falecido já possuía uma doença grave e prolongada ou a idade já era muito avançada. Os enlutados, em variadíssimos casos, preservam a memória da pessoa morta, através, por exemplo, dos seus objectos pessoais. Por vezes, o quarto do falecido é conservado intacto, como se acreditássemos que o mesmo irá regressar um dia.
O luto traumático também pode desaguar no esquecimento. Posteriormente à morte traumática de um ente prezado, o enlutado pode conviver com alguns bloqueios de memória. Os esquecimentos podem estar inventariados com um conjunto de experiências vivenciadas junto do ente querido, precisamente no período próximo da data do seu falecimento. Existem relatos de enlutados que não se lembram do velório ou do enterro, mesmo tendo participado activamente nesses rituais. Inicialmente o luto acaba por ser patenteado pelo sofrimento, amargura, infelicidade, choro e recordações persistentes do ente falecido. Todavia, e após algum tempo, o luto é apresentado especialmente por sentimentos imersos em saudade. Salientar que a duração do luto pode variegar, dependendo do escalão de parentesco e do vínculo afectivo com o falecido. Há enlutados que demonstram o seu desconsolo e a sua mágoa por extensíssimos períodos de tempo. Paralelamente à duração do luto, podemos seguramente evidenciar o modo como este é exteriorizado. Algumas pessoas conseguem demonstrar o seu padecimento de uma forma natural, enquanto outras são mais introspectivas, recolhidas e “acanhadas”. Será que não é fundamental saber, até para compreender a abrangência dos mesmos, quais foram os acontecimentos, no decorrer do século XX, que alicerçaram processos de luto tão traumáticos? Será que as mortes originadas pela guerra não patrocinaram lutos ininterruptos, provocando sofrimentos e apoquentações a famílias e comunidades inteiras?
Os sobreviventes enlutados do pós-guerra, ao sentirem-se isolados e melancólicos, estabeleciam algumas ligações ou conjugações que ainda os encaminhavam mais velozmente para os sentimentos de dor “limite”. Essas ligações ou conjugações podiam ser representadas através de um único vocábulo; de alguns versos de um poema; de afagos suaves e secretos; de um perfume que teimou em ficar; e de notas musicais existentes numa melodia deslembrada, antiga e compassada. Será que estas condições não podiam estar e ingressar em concordância com as recordações alusivas aos mortos próximos e queridos?
Na realidade, a morte de uma pessoa estimada e amada acarreta algumas dificuldades para a vida do enlutado, podendo o luto metamorfosear-se em luto traumático. O sofrimento, a tristeza, o aperto no coração e o isolamento constituem características que são parte integrante do processo de luto. Todavia, nunca é demais salvaguardar que nem todos os enlutados vivenciam experiências traumáticas. Muitos enlutados acabam por ter um exacto e menos denso período de luto, conseguindo ultrapassar as dificuldades e demonstrar o seu pesar de um modo mais célere e fácil. Será que o luto traumático não é mais frequente nos laços de parentesco estreitos?
As experiências de memórias traumáticas de enlutados também são encontradas no universo virtual. De forma a combater algumas das consequências provocadas pelo luto traumático, como os esquecimentos e as recordações bloqueadas, foram concebidos sites, como é o caso dos cemitérios on-line, para memorar e conservar a memória do defunto. Este tipo de sites ou de serviços existem desde a década de 1990, tendo como principal finalidade disponibilizar espaços com registos e memoriais de indivíduos mortos. Nestas páginas on-line, os enlutados têm a possibilidade de depositar flores, coroas, arranjos e velas virtuais nos espaços memoriais de cada defunto. Desta forma, cada ente falecido possui um “lugar” com informações pessoais, fotografias, mensagens de pesar e frases de nostalgia deixadas pelos familiares e amigos. Será que a memória não se tornou cada vez mais presente?
Pesquisas epidérmicas nas redes sociais acabam por ser suficientes para encontrar uma enorme quantidade de perfis de pessoas mortas. Logo, existem inúmeros utilizadores falecidos que permanecem “vivos” nos seus perfis pessoais. Será que o enlutado não saboreia esses sites, como espaços para lembrar e conservar a memória do ente querido falecido?
Após a morte, muitos familiares e amigos da pessoa falecida optam pela eliminação do seu perfil, contudo existem outros que não fazem qualquer tipo de alteração, permanecendo o morto on-line, como se ainda estivesse vivo, com fotografias, lembretes de aniversário, e mensagens deixadas antes e após a morte. Após a morte, e principalmente nos primeiros meses que sucedem o falecimento, os recados são frequentes e manifestam a dor da distância que os escolta permanentemente. As mensagens dos enlutados costumam ser comoventes, emocionadas e tocantes. Será que os enlutados não mostram o seu sofrimento através das mensagens virtuais? Será que os enlutados, através das mensagens virtuais, não procuram abreviar a constante dor da perda?