O antigo Sanatório dos Ferroviários, na Serra da Estrela, abriu as portas em abril como Pousada de Portugal, mas nem por isso acabou a longa saga em que se transformou o processo de recuperação do edifício.
A Enatur, que detém a Pousada, colocou a Presidência do Conselho de Ministros em tribunal por quebra do contrato de financiamento, depois de terem sido suspensos os fundos comunitários (aprovados durante o segundo mandato de José Sócrates) por suspeitas de constituírem auxílios de Estado a um projeto destinado a funcionar em mercado.
A empresa detida pelo Turismo de Portugal (TP) e pelo grupo Pestana, um dos principais grupos hoteleiros nacionais, reclama o pagamento de 3,7 milhões de euros, o montante que ficou “por executar ao abrigo do contrato” com o Programa Operacional de Valorização do Território (POVT), explicou a empresa ao PÚBLICO.
É o Estado contra o Estado, um processo insólito em que a tutela diz não intervir. “Apesar da composição da estrutura societária da Enatur, os titulares dos órgãos de administração das empresas públicas gozam de autonomia de gestão nos termos da lei”, disse o secretário de Estado do Turismo, Adolfo Mesquita Nunes. O governante acrescentou não ter “qualquer interferência nas decisões dos órgãos da sociedade, nomeadamente do seu Conselho de Administração e nas decisões que este entende que melhor defendam os seus interesses”.
A Enatur candidatou-se aos fundos comunitários para recuperação do edifício das Penhas da Saúde (que esteve ao abandono durante vários anos) em 2008. O projeto já vinha de 1998, quando a Turistrela (concessionária da exploração turística da região) lhe cedeu o edifício pelo valor simbólico de um escudo, mas nunca saiu da gaveta por falta de financiamento. Mais tarde, quando o grupo Pestana comprou 49% da Enatur, pareceu ficar definitivamente posto de parte porque o novo accionista nunca lhe reconheceu interesse. Até que a questão do financiamento 100% público ficou salvaguardada.
“O projeto esteve para cair diversas vezes”, disse ao PÚBLICO Jorge Patrão, ex-presidente da extinta Região de Turismo da Serra da Estrela, que ao longo dos anos acompanhou as diversas etapas que culminaram com o acordo entre o Governo e a Enatur para a recuperação do sanatório. O contrato entre a Enatur e o POVT foi assinado em 2009, definindo um apoio de 11,9 milhões de euros, de um investimento total aprovado de 17 milhões. Paralelamente, ficaram garantidos cinco milhões de euros do Fundo do Turismo. Em 2011 iniciou-se a obra, a cargo da Soares da Costa, mas, no final de 2012, o POVT cortou os pagamentos depois de dúvidas levantadas por uma auditoria da Inspeção-geral de Finanças (IGF), de que a Enatur diz só ter tido conhecimento em janeiro de 2013.
Sobre essa inspeção, fonte oficial do Ministério das Finanças disse que o projeto da Enatur foi seleccionado de forma aleatória para o conjunto de operações de auditoria a realizar em 2012. Esta foi executada pelo antigo Instituto Financeiro para o Desenvolvimento Regional (IFDR) e surgiram dúvidas quanto ao enquadramento da obra “no domínio de intervenção ao abrigo da qual foi aprovada, bem como quanto à coerência deste enquadramento com os requisitos aplicáveis em matéria de auxílios de Estado ou enquanto projeto gerador de receitas”. Para evitar eventuais “consequências mais nefastas” para a entidade beneficiária e para o Estado-membro, os responsáveis da Autoridade de Certificação e Entidade Coordenadora do FEDER e IFDR contactaram Bruxelas para “esclarecer e solucionar o enquadramento do projecto”, adiantou o porta-voz das Finanças. A Comissão Europeia considerou haver “falta de enquadramento” no âmbito do POVT e, uma vez tomadas as “medidas apropriadas”, o tema “há muito deixou de relevar para a IGF”.
Mas para a Enatur continua a ser relevante. A empresa remeteu os esclarecimentos sobre as objeções que levaram ao cancelamento das verbas para a “autoridade de gestão do POVT” que, uma vez contactada, entendeu não “prestar nenhuma informação sobre o assunto neste momento”. Fica assim por perceber como pôde ser aprovada uma candidatura que passados cinco anos se considerou infringir as regras comunitárias.
Em declarações ao PÚBLICO, Luís Patrão (irmão de Jorge Patrão), que presidiu ao TP e estava na administração da Enatur quando se fez a candidatura aos fundos, diz que cedo surgiram “as reservas” do POVT, que acusou de ter uma “posição dúplice”. Se por um lado era financiador, por outro “teve sempre má vontade em relação ao projecto” da pousada. O antigo chefe de gabinete dos ex-primeiros-ministros António Guterres e José Sócrates (que também foi secretário de Estado da Administração Interna de António Guterres até se ter demitido, tal como Armando Vara, na sequência do caso da Fundação para a Prevenção e Segurança) diz que “ficou demonstrado” que “o único aproveitamento do imóvel seria aquele”. Por outro lado, também se provou que “nenhum investimento privado seria capaz de fazer face àquele encargo sem os apoios comunitários”.
Segundo fonte próxima do processo, enquanto a Enatur procurava esclarecer o tema com as Finanças, “houve alguém, numa entidade ligada à gestão dos fundos, que remeteu a questão para Bruxelas” e condicionou o desfecho. Mas “o tempo das dúvidas já tinha passado”, disse a fonte, sustentando que, “mesmo que existissem razões para se questionar a elegibilidade”, quando o financiamento foi aprovado é que se deveriam ter feito todas as perguntas e não depois de “uma série de auditorias e relatórios e de a pousada estar praticamente concluída”.
Além do contrato com o POVT, a Enatur estava blindada por um contrato com o Estado que lhe garantia que não teria de colocar capital no projeto. Por outro lado, o contrato com a Turistrela, previa que se a pousada não estivesse em exploração até ao final de 2013, reverteria para essa empresa praticamente recuperada e a custo zero. “Seria impensável parar-se o projeto”, sublinhou. A queixa da Enatur contra o Estado está em análise no Tribunal Administrativo de Lisboa.