Impelido pelo cenário de crise económica e financeira que subjuga e absorve o nosso País, o conceito de “mercado social de arrendamento” tem vindo, ao longo dos tempos, a ser utilizado e aproveitado na designação, na significação e na superfície de diligências e de actividades habitacionais, numa primeira etapa de cariz local e posteriormente de âmbito nacional. Será que essas actividades e diligências, no que respeita às respostas habitacionais, não sugerem a transformação do paradigma vigente? Será que não existe uma espécie de novo “patamar de necessidades”?
Apesar de boa parte da população não se emoldurar num novo contexto familiar e socioeconómico com necessidades de apoio social, a realidade mostra-nos, e de forma conjecturável, que devido às consequências nefastas oriundas da agitação económica e financeira acima mencionada, o número de agregados familiares com rendimentos franzinos para ingressar no mercado privado de arrendamento e, simultaneamente, elevados para que lhes seja concedida uma habitação social terá sido, seguramente e consideravelmente, ampliado. Será que não é fundamental proceder à recolha e à análise de toda a base documental e estatística coligada a cada um desses “protótipos habitacionais”? Será que não é pertinente a confrontação dos conceitos e dos modelos teóricos de mercado social de arrendamento com os arquétipos e os resultados mencionados e assinalados em cada uma das outras “configurações habitacionais”? Será que não é fulcral conferir até que patamar essas próprias configurações se poderão ter corporalizado como resposta eficiente e convincente às populações?
A procura de amparo social tem manifestamente crescido um pouco por todo o País. Porém, ainda não existe um encadeamento robusto deste “quadro social” com as políticas de habitação do Estado, ou seja a implementação do mercado social de arrendamento, saboreado como sector intermédio de habitação, ainda é uma espécie de miragem. Será que a implementação de um verdadeiro mercado social de arrendamento, devido à conjuntura em que Portugal está mergulhado, não agasalha o carácter de improtelável? Será que não há inúmeras debilidades no âmago dos regimes de arrendamento já existentes, ou seja no “mercado privado de arrendamento” e no “mercado de habitação social”? Será que não é essencial estruturar e desenvolver um quadro de referência, de natureza estratégica, que proporcione as bases e os conhecimentos necessários para a implementação gradual e mais concludente de renovadas políticas de habitação?
Na qualidade de sector intermédio de arrendamento, o conceito de mercado social de arrendamento perfilhado em Portugal pretende avizinhar-se, talvez excessivamente, com o mercado de arrendamento privado. Esta situação acaba por constituir um enorme obstáculo no acesso, por parte dos agregados familiares que se submetem à candidatura, aos benefícios desses mesmos programas. Logo, parece mais que óbvia a indispensabilidade de uma intervenção do Estado no que toca ao apoio económico às famílias, por exemplo através da concessão de subsídios, de modo a permitir uma dilatação da “silhueta” socioeconómica dos potenciais candidatos ao mercado social de arrendamento de extensão nacional, bem como um alívio das tabelas de esforço de cada agregado familiar com despesas em habitação.
Em qualquer conjuntura de crise, acabam por ser mais visíveis os resultados das políticas de habitação de índole segregativa e fragmentária, redundando, esta condição, num crescente distanciamento entre os diferentes sectores que estruturam o regime de arrendamento em Portugal. O número de famílias com parca capacidade económica cresceu consideravelmente no nosso País. Estes agregados familiares não se encaixilhavam em qualquer sector do sistema de arrendamento dual que vigorou, em circunferência nacional, até Junho de 2012. Solicitavam constantemente apoio social junto das Câmaras Municipais, sendo esta configuração uma das principais razões para o desenvolvimento, por parte do próprio poder local, de algumas respostas habitacionais. Foi neste cenário que alguns Municípios lançaram alguns “Programas de Arrendamento”, denominando-se como uma iniciativa de mercado social de arrendamento que tinha como público-alvo os casais jovens e as famílias da classe média que não se encaixilhavam no “mercado de habitação social”, mas também não usufruíam de rendimentos que os possibilitasse arrendar no “mercado livre”.
O Governo Central acabou por legitimar capacidade de resposta e sucesso a esta iniciativa pioneira de âmbito local, tendo lançado em meados de 2012 o programa “Mercado Social de Arrendamento” a todo o território nacional. Como despontou o conceito de “mercado social de arrendamento”? Como se define esse conceito? Qual a função do mercado social de arrendamento, enquanto sector de arrendamento intermédio, num regime de arrendamento dual? Quais são os vértices que o distinguem dos demais mercados de habitação? De que modo convive com os restantes mercados? Como se deve arquitectar um arquétipo de mercado social de arrendamento? Quais são as circunstâncias em que o mesmo deve ser implementado?
O incremento do número de famílias com dificuldades em ingressar em qualquer um dos mercados de arrendamento pré-existentes, devido sobretudo à ausência de um sector intermédio de arrendamento ou de um alicerce legislativo que apropinquasse as particularidades desses mercados, metamorfoseou-se num contexto alvo de preocupação por parte das Autarquias locais e posteriormente também do Governo Central. Neste sentido, e como forma de abreviar as dificuldades, perfilhou-se a designação de “mercado social de arrendamento” para se aludirem a novas políticas de habitação. Será que não é relevante apreciar as valências e os argumentos dessas iniciativas? Será que as mesmas alcançaram o estatuto de respostas eficazes às fragilidades do sistema de arredamento pré-existente? Será que não é fulcral definir um paradigma teórico de confrontação e de avaliação acerca das valências e dos programas coligados ao conceito de mercado social de arrendamento em Portugal?
Na Europa, embora desfilem diversidades no modo como são definidos e perfilhados de País para País, existem sobretudo dois mercados de arrendamento, o mercado privado de arrendamento e o mercado concernente às habitações sociais. Estes mercados diferem, basicamente, no financiamento, no seu público-alvo, e no encadeamento entre a oferta e a procura. O primeiro mercado está relacionado a fundos de investimento privado, em regime de mercado livre ou regulado pelo Estado, e determinado a colmatar as necessidades de quem o procura e nele procura ingressar. Por sua vez, no segundo mercado supracitado o investimento será concretizado pelo Estado ou por instituições financiadas pelo mesmo, sendo que o seu papel é o de outorgar habitação à população economicamente mais desprotegida.
No mercado privado de arrendamento, o senhorio e o inquilino, ou seja a oferta e a procura, encontram-se, em configuração arbitrária, num argumento de mercado económico definido pela aclimatação das capacidades económicas do inquilino ao valor da renda desejado pelo senhorio. No arrendamento em regime de habitação social é o próprio Estado a determinar quem tem acesso às rendas “subsidiadas”, adequando a necessidade à oferta e exilando a rentabilidade económica para patamares inferiores. Será que o segundo modelo não substitui o papel executado pelas dinâmicas dos mercados económicos? Será que estes mercados, na doutrina da economia, conseguem responder à própria “necessidade”? Será que a “necessidade” poderá corresponder aos valores de equilíbrio de mercado? Será que o conceito de habitação social não pode ser saboreado como uma espécie de ponte entre as margens existentes entre a procura concreta e a necessidade de habitação? Será que este género de sequencialidade conceptual não se revela cada vez mais indeterminada? Será que a tendência europeia não é a de abeirar estes dois conceitos?
Realçar que existem Países, nos quais as habitações sociais não servem exclusivamente os agregados familiares mais desfavorecidos. Em outros Países, o estudo e a entrega de habitações sociais é executado com alicerces em investimento privado, ainda que convenientemente subsidiado e regulamentado. Será que esta disposição não inviabiliza a fundação e a disseminação de monopólios privados? Será que na Europa não preponderam os Países nos quais esses dois mercados de arrendamento são facilmente distinguíveis e reconhecíveis? Será que na Europa não predominam Países nos quais se identificam celeremente agregados familiares que agasalham dificuldades em ingressar em qualquer um desses mercados? Será que as dificuldades de acesso não estão alicerçadas por diferentes razões? Será que a forma como as políticas de habitação se propendem a definir por sector é a mais correcta e abrangente? Será que as políticas de habitação procuram verdadeiramente aproximar estes dois mercados? Será que não existe um hiato entre a procura efectiva e a necessidade? Será que alguém sabe o tamanho desse hiato?
De País para País há obviamente diferentes tendências de estreitamento ou alargamento. Por exemplo, na Holanda não existe qualquer empreendimento reservado à habitação social que esteja na posse administrativa do Estado, sendo unicamente consentido que algumas associações sem fins lucrativos possam administrar esse parque urbano tão específico. Em Países como a Inglaterra ou a Alemanha são admitidos todos os géneros de senhorios privados, ainda que convenientemente subsidiados, no âmbito das habitações sociais. Nos Países em que qualquer senhorio pode actuar, mesmo de forma simultânea, no mercado privado de arrendamento ou no mercado de habitações sociais acaba por desaparecer a dissemelhança conceptual agregada aos dissemelhantes padrões de senhorio, uma vez que a competição privada no sector das habitações sociais é promovida. Será que a discrepância na relação qualidade e preço existente entre os dois mercados não afecta o seu próprio distanciamento? Será que o hiato entre os dois mercados não aumenta quanto maior for a diferença dessa proporção? Será que a tendência de afastamento entre os dois mercados não medra quantos mais benefícios forem adjudicados aos contratos assinados num dos regimes de arrendamento em prejuízo do outro?
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