A violência apresenta-se não só em configurações directas e estruturadas, como também em formatos indirectos, oblíquos e supostamente voluntários.

Quando a sociedade civil elimina milhões de cidadãos do sistema escolar, das doutrinas sociais de produção e dos paradigmas de consumo legal, podemos seguramente afirmar que a sobrevivência “animal” dos mesmos deve baloiçar, de modo inevitável, entre as várias fisionomias do crime. Será que para boa parte da população, o ingresso no mundo do crime não constitui a única e a “melhor” opção?

Os programas nacionais de segurança patenteiam, em inúmeras circunstâncias, uma resposta “figurativa” do modelo de políticas criminais autoritárias e repressivas. Este paradigma acaba por ser encaminhado para a confecção de consequências sociais e psicológicas no imaginário popular. Será que não se incute, em diversos contextos, o conceito de segurança através da interpretação falaciosa sobre a presença do Estado como responsável pela aplicação da lei?

Na verdade, e paralelamente aquilo que acontece no crime organizado, os planos repressivos acabam por ser inadequados para contemplar e controlar o crime desalinhado praticado por sujeitos insulados. Neste sentido, os mesmos concretizam um simples papel simbólico diante do poder político-económico que está adjudicado ao crime organizado.

A condenação criminal talvez nunca tenha sido capaz de cumprir as funções de prevenção global e especial, existindo como chicote trivial sobre cidadãos com poucas doses de poder. As disparidades que existem no seio da população, em relação ao acesso à justiça, acabam por caracterizar a configuração mais pungente, cendrada e indesejável de que há memória.

O acesso desigual à justiça aniquila a auto-estima; difunde sentimentos de total impotência; concebe repulsão, letargia e perturbação; transporta os cidadãos à incredulidade corrosiva e à insolência universalizada; e destrói os alicerces da legitimidade política democrática.

A desigualdade no acesso aos aparelhos de justiça acaba por ocorrer no contexto em que a sociedade e o Estado perdem o seu “regulamento” político, cultural e social, deixando os mesmos de ser parte integrante de um sistema que organiza o cosmos social e os valores, para se metamorfosearem num mecanismo desqualificado de acometimento “privado” ao poder.

Há Estados, juntamente com o capitalismo moderno, que nunca procuraram verdadeiramente conceber e disseminar as fronteiras daquilo que é público e daquilo que é privado. Será que os Estados e o capitalismo moderno não se reformulam reciprocamente? Será que a economia política do crime organizado não estimula esse processo?

A incoerência da criminalização acaba por se exteriorizar a partir da prepotência presente na selecção das substâncias proibidas, passando pela conjectura que defende que a oferta pode ser circunscrita pela compressão de uma procura crescente.

No decurso do consumo crescente, as barreiras à produção e comercialização operam como autênticos incentivos, pois aumentam as taxas de lucro dos executantes em paralelo com o aumento dos sulcos embrulhados nas transacções.

No mundo das drogas, a salvação das vidas dos dependentes, defendidos da mortificação das drogas pela política proibicionista, torna-se cada vez menos plausível, devido à impotência policial, à franzina legislação e à impetuosidade dos mercados.

Diariamente chegam ao mercado novas substâncias, com silhuetas e temperamentos absolutamente diferentes, cada vez mais desobedientes a qualquer reivindicação de fiscalização repressiva.

É fundamental compreender que o crime organizado está encaixado nos encadeamentos capitalistas, amamentando a exploração de mão-de-obra e a excisão de elevados lucros.

Infelizmente, as drogas são mercadorias de enorme circulação na sociedade actual. Será que não é indispensável contemplar correctamente as conexões de trabalho que indumentam o crime organizado? Será que não é fundamental compreender como essas conexões exploram a força de trabalho de boa parte dos adolescentes?

No capitalismo, a “multiplicação” social surge através da produção e da propriedade. As pinturas com suporte no pensamento capitalista acabam por assolar os indivíduos como sujeitos totalmente completos.

A produção de qualquer mercadoria tem como alicerce a acumulação de riqueza, ultrapassando o próprio valor de utilização e despertando o consumo. Será que a edificação dos encadeamentos sociais não está inventariada na mercantilização?

O dia-a-dia dos seres humanos é erguido por valores corpóreos que espelham como a energia da meditação da classe titular dos meios de produção é o pensamento dominante. Os cidadãos que compõem a classe dominante içam um determinado período histórico em toda a sua dimensão.

É óbvio que esses indivíduos dominam em todos os campos e agasalham uma posição dominante também como criaturas racionais e pensantes, e como criadores de ideias e conceitos que decretam a produção, arrumação e distribuição das reflexões da sua época.

Logo, podemos afirmar que as meditações e opiniões das classes dominantes constituem os pensamentos dominantes da sua época.

A população sofre influências e voltagens de carácter estrutural, político e económico, bem como de objectos e contendas que pertencem à superfície ideológica. Portanto, é impossível desconectar as correspondências sociais da estruturação ideológica que suporta as forças e as ferramentas produtivas.

Em diversas conjunturas, “aplica-se” o quiproquó de separar a tela ideológica da económica com a finalidade de encobrir a autêntica realidade. A lógica capitalista é extraordinariamente impiedosa, uma vez que é no seio da profusão que o conjunto das dissemelhanças sofre uma ampliação.

Quanto maior for a acumulação de riqueza para alguns, maiores serão os índices de indigência para outros. Será que a sociedade capitalista contemporânea não explora o homem pelo homem.

A violência apresenta-se não só em configurações directas e estruturadas, como também em formatos indirectos, oblíquos e supostamente voluntários. A pobreza, a discriminação escolar, a prostituição e até algumas formas de “indisposição” também podem ser consideradas como fisionomias de violência.

Será que a violência, como modo de vida, não constitui um requisito do próprio âmago do regulamento social? Será que essa violência mouca não origina um maior número de vítimas do que a violência barulhenta dos mecanismos coercitivos do Estado?

Será que a criminalização da pobreza não provoca que as políticas de segurança se estabeleçam como uma espécie de despotismo sobre os mais necessitados? Será que as mesmas não são veiculadas, de uma forma pidesca, contra as classes mais pobres?

São inúmeras as ambiências que “apadrinham” o quotidiano dos grupos sociais e transportam os sujeitos, quer sejam individuais ou colectivos, ao exercício de actuações violentas. Será que estas acções violentas, num primeiro e epidérmico olhar, não aparentam ser unicamente comportamentos singulares?

A acoplagem de jovens com o crime organizado corporaliza uma clara analogia de dois vértices. Um vértice, expressa os paradoxos sociais resultantes do objecto social e do antagonismo entre trabalho e capital. O outro manifesta a profunda intensidade do extravio das qualidades morais humanas a que os sujeitos estão subordinados.

Os adolescentes que estão embrulhados com a criminalidade acabam por não conseguir identificar-se com o trabalho “tradicional”, contudo subjugam a sua força de trabalho à exploração, sem nunca reconhecer que efectivamente estão a ser tiranizados.

Na verdade, e para além da gratificação alcançada, os mesmos sentem-se saciados através do poder, estimação e respeito que o crime proporciona.