Nos hospitais públicos portugueses há imensas pessoas que morrem nas urgências quando se encontram à espera de serem atendidas ou de realizarem exames de diagnóstico.

É seguramente legítimo conjecturar que algumas dessas vidas poderiam ter sido salvas caso as mesmas tivessem tido um atendimento célere. O actual Governo, na pessoa do antigo Ministro da Saúde, declinou qualquer acepção estrutural, segundo o mesmo poderá haver “casos individuais de falta de assistência”. Na realidade, e numa perspectiva epidérmica e meramente estatística, podemos afirmar que existem casos em que algumas pessoas morrem mesmo atendidas em franzinos espaços de tempo de espera. Será que administrar um hospital, devido sobretudo às limitações orçamentais, não é cada vez mais angustiante? Será que não temos vindo a assistir a um desinvestimento público constante e perturbador na área da saúde?
Aqueles que agasalham contextos financeiros para pagar, recorrem cada vez mais aos serviços de saúde privados. Quem tem parcas condições financeiras, recorre a um Serviço Nacional de Saúde (SNS) que está visceralmente subjugado a um estrangulamento financeiro cada vez mais veemente.

Será que a dilatação do mercado privado da saúde e a decadência do SNS não estão interligadas em dissemelhantes configurações?
A própria e efectiva deterioração do SNS desempenha um papel fundamental no direccionamento dos utentes para o comércio de índole privada. Esta conjunção acaba por promover algumas “consciências” em relação ao SNS como sejam: a desagregação da qualidade do mesmo; a dilação no seu acesso; a deficiente adaptabilidade de tratamentos e procedimentos; a concentração de serviços; e a tentativa de distanciar os serviços dos utentes. À medida que as classes sociais de rendimentos mais elevados e com mais voz em termos políticos abandonam o SNS, a deterioração do mesmo torna-se progressivamente maior e menos perceptível, bem como a pressão política para inverter o processo acaba por diminuir significativamente. Será que não se está a edificar a passos largos um paupérrimo serviço para “pobres”? Será que não era desejável um serviço de qualidade e de referência para todos?
A dissertação do co-financiamento merece uma alusão especial. A denominação de “taxas moderadoras” inspirava um propósito eventualmente benigno, o de abrandar o uso desmedido e dispensável dos serviços através do efeito procura/preço. Todavia, as “taxas moderadoras” em Portugal aplicam-se a tudo o que são serviços, exames e tratamentos prestados pelos serviços de saúde públicos, independentemente de serem ou não prescritos por médicos e independentemente de ninguém nos seus cinco sentidos imaginar que os utentes poderiam querer recorrer a eles por fundamentos recreativos ou por não terem nenhuma outra ocupação. Será que as taxas moderadoras não constituem um aparelho de co-financiamento camuflado sob um manto de fingimento, pois nem ao menos são arrogadas enquanto tal?
O antigo Ministro Paulo Macedo afirmou que “neste momento não há médicos de medicina geral e familiar que possam ser recrutados pelo SNS” de forma a fazer frente aos aumentos de procura que se vão registando. Na verdade, parte dessa insuficiência está intimamente associada não só à limitação artificial imposta à formação de médicos no argumento do numerus clausus das faculdades de medicina, como também ao resultado da concorrência por parte dos prestadores de saúde privados.
Num País erudito e equitativo, a impossibilidade de absoluta satisfação pública de uma necessidade elementar devido aos índices elevados de concretização da concorrência privada conduziria instantaneamente a que se reconsiderasse verdadeiramente e sisudamente a “periferia” que deve ser outorgada aos executantes privados nesse próprio “departamento”.

Em presença de algumas lamacentas conjunções de decessos nas urgências, o actual Governo e o antigo Ministro decidiram afirmar e defender que essa conjuntura não tem qualquer tipo de temperamento estrutural, comunicando apenas que fazem o que podem para resolver a situação. Será que os incompetentes têm capacidade para resolver alguma coisa? Será que os mesmos estão profundamente inquietados com o problema? Será que o Governo não é responsável pelo lutulento e sistemático desinvestimento na saúde? Será que o Governo não contribuiu para a transfiguração de um sistema público e universal de saúde num arquétipo a duas velocidades? Quantos acidentes, desgraças e mortes serão necessárias ocorrer para que os responsáveis políticos do nosso País perfilhem estratégias superiormente delineadas para a resolução de um imbróglio que não é novo, nem tão pouco desconhecido? Será que não existem silêncios que matam indiscriminadamente? Será que é normal falecerem doentes nos serviços de urgência hospitalares públicos enquanto aguardam a sua vez para serem observados? Será que a falta de recursos humanos e a insuficiência de camas de internamento também não ajudam a engrossar este pardacento fenómeno?
A administração hospitalar, assim como a administração das restantes instituições, deve saborear e respeitar o princípio de equidade e o absoluto acesso dos cidadãos aos cuidados de saúde de qualidade, bem como o estatuto de todos os seus colaboradores com valorização das carreiras profissionais e respectivos salários.
Os cidadãos aconchegam a noção que governar implica a realização de opções e ninguém terá seguramente dúvidas de que essas optações têm efeitos assertórios ou contraproducentes. Estas são certezas e asseverações que nenhum Governo pode negar quando se trata de fazer a avaliação da sua performance política. Portanto, não é certamente de estranhar que contemporaneamente todos os portugueses estejam bastante conscientes de que as escolhas políticas e os cortes abruptos que este Governo aplicou no sector da saúde estão a ter resultados dolosos na vida das populações.
As urgências hospitalares foram sempre degustadas como superfícies de risco e profunda apoquentação para os cidadãos, embora o grau de gravidade de cada caso oscile bastante. Infelizmente nos últimos tempos “visitar” às urgências passou a ser um drama acrescido, ou seja um espaço de risco agravado, pois, em certas circunstâncias, parece que as pessoas estão totalmente desamparadas.

Aquilo que é mais grave e preocupante é quando se registam óbitos nas urgências sem que sequer tenha havido qualquer tipo de assistência. Temas que embrulham a morte até podem ser de intrincado debate, todavia jamais podem ser alvo de nenhuma espécie de tabu. Torna-se relevante “escaramuçar” o assunto e arremessá-lo para a praça pública. Será que esta estratégia não vai coadjuvar a desarraigar o problema do quotidiano hospitalar? Será que falecer com venerabilidade não é o mínimo que se pode exigir ao Governo?
Certamente que os cortes na saúde não foram os únicos culpados de tudo, até porque é impossível realizar comparações de carácter absoluto, porém penso que todos concordam que ninguém deveria morrer numa urgência hospitalar depois de uma espera de meia-dúzia de horas sem terem sido prestados quaisquer cuidados. As dificuldades concebidas por este Governo e ofertadas aos serviços de saúde foram inúmeras e de elevada gravidade que actualmente acaba por ser legítimo que qualquer indivíduo não tenha dúvidas de que esta conjuntura é a consequência de um abrangente conjunto de malévolas optações de políticas públicas. Será que não há “espaços” em que não devemos regatear? Será que não há “superfícies” em que um desinvestimento é altamente prejudicial, podendo mesmo ser considerado de “delinquente” ou transgressor? Será que devemos poupar no bem comum mais essencial? Será que não vivemos tempos indecorosos? Será que sabemos aquilo que verdadeiramente devia ser prioritário? O que significa o vocábulo prioritário? Será que o problema não passa também por uma imperfeita gestão dos recursos disponíveis?
Como já referi, desafortunadamente recorrem às urgências incalculáveis casos que não necessitam o cuidado de um balcão de urgências.

Numa linguagem exclusivamente economicista, estes cidadãos que convergem às urgências sem o efectivo carecimento da mesma executam uma espécie de externalidade desfavorável sobre todos aqueles que mais precisam e padecem. Exemplo disso são as gripes e outros achaques “menores” que devem ser dissolvidos nos Postos de Socorro Locais ou nos Centros de Saúde que ficam abertos para além do horário habitual de expediente. Será que se esta situação fosse resolvida, os prazos de espera nas urgências não adelgariam? Será que os médicos não devem aumentar a taxa moderadora sempre que avaliem uma determinada situação que desagúe numa falsa urgência?

Por decisão pessoal, o autor do texto não escreve segundo o novo Acordo Ortográfico.