A esmagadora maioria dos portugueses, independentemente da sua situação socioeconómica, possui pelo menos um telemóvel.

Tendo Portugal um dos “índices” mais franzinos na “balança” comercial da União Europeia, a percentagem de instilação dos telemóveis já ultrapassou todas as expectativas, até mesmo as mais tenebrosas e cavernosas.

Por exemplo, mendigar nas ruas, munido com a “indumentária” telemóvel, há muito tempo que está na moda. E a moda, ainda que seja ridícula, burlesca e grotesca e tente passar aos outros uma mensagem, muitas vezes deturpada e conspurcada acerca da nossa identidade, da nossa personalidade, das nossas capacidades, das nossas intenções e das nossas estimações, agasalha algumas disposições, texturas e arrumações que a autorizam a desfilar.

A sociedade portuguesa está integralmente e lamentavelmente viciada no aparelho “telemóvel”. O estatuto do telemóvel vulgarizou-se de tal maneira, que não será exagero asseverar que este equipamento se nacionalizou e faz parte de todas as “laborações” dos indivíduos. Será que o telemóvel, pela sua ubiquidade e pelo seu nomadismo, não constitui o objecto que mais metamorfoseou as nossas rotinas sociais?

A realidade mostra-nos que não conseguimos estar afastados do telemóvel e a denegação em facultarmos o nosso número de telemóvel é interpretada como uma carência de civilidade ou uma imponderada intenção de estar indisponível. Para os nossos filhos, o telemóvel constitui somente mais um aparelho para a total “passividade”; para a pseudo emancipação; para a vacilante independência em relação ao mundo dos adultos; e para o desaparecimento dos índices de privacidade.
Na sociedade hodierna, para além de grande parte dos valores sociais já se terem diluído pelo abandono de que foram alvo, a violência é uma prática normal e a educação é desenhada numa tela rara, “extravagante” e incomum. Nesta sociedade também há um forte estímulo à exibição pública, na qual o telemóvel, devido ao seu equipamento de vídeo e fotografia, outorga uma sólida contribuição.

Na sociedade ocidental, o fenómeno do uso de telemóvel ampliou-se independentemente da estratificação etária, económica, social e cultural. Para esta expansão, muito contribuíram os ininterruptos aperfeiçoamentos nos serviços disponibilizados por estes equipamentos. A verdade é que com um elementar teclar temos a possibilidade de viajar não só para “universos” etéreos, translúcidos, sublimes e transparentes, como também para espaços oscilantes, duvidosos, ambíguos enigmáticos e obscuros.
As chamadas e mensagens de telemóvel, quando utilizadas como instrumentos de controlo laboral e afectivo, transformam-se em algo completamente desnecessário. É seguramente importante asseverar que fazemos chamadas por telemóvel que jamais faríamos se tivéssemos unicamente telefones fixos. Neste contexto, facilmente concluímos que não são os monogramas da indispensabilidade que fundamentam a presença ecuménica dos telemóveis.

A justificação central para oferecer telemóveis às crianças reside no efeito de proximidade entre pais e filhos. Contudo, depois de uma epidérmica cogitação, espontaneamente depreendemos que este propósito tem tanto de trivial e de inventivo, como de irreal e de ilusório. Os nossos filhos, para além de utilizarem os telemóveis para ouvir música, ver vídeos e jogar jogos, também os “aproveitam” para preservar, e muitas vezes “imunizar”, os amigos reciprocando, de forma constante, abusiva e censurável, pensamentos, opiniões, convicções, conselhos e confissões.

As tecnologias, ao longo dos tempos, têm colorido e descolorido os semblantes da humanidade, disciplinando concomitantemente tudo aquilo que pertence ao “social”, ao emocional e ao simbólico. Surge, neste encadeamento, uma transfigurada fragrância no dinamismo dos costumes cognitivos; nas práticas comunicacionais; na individualização dos territórios pessoais; e nos alicerces e estruturas dos relacionamentos individuais e grupais.
Telefonar de qualquer local modifica, de forma significativa, os paradigmas de presença e de convivência, uma vez que conseguimos, ainda que não fisicamente, comparecer em todo e qualquer espaço. O telemóvel também nos submete a uma ininterrupta interacção, pois, mesmo quando está desligado, é alvo do encaminhamento de mensagens informativas por parte das operadoras.

O homem, para além dos acessórios de vestuário e de alguns acessórios de beleza discutíveis, passou também a ter acessórios de gestão de comunicação, de identificação espacial e de administração de tempo, sendo, estes últimos, responsáveis por uma “maquilhagem” menos visível, mas certamente com mais “contra-indicações”, do que a do “Rímel”.

Torna-se fundamental reflectir na forma como lidamos com os emprazamentos, as notificações e os reptos contemporâneos, intimamente associados à “importação” das modernas tecnologias, tanto nos nossos estabelecimentos de ensino, como nos nossos lares. Será que não é imprescindível, tendo sempre como pano de fundo a conjuntura actual ao nível das novas tecnologias, autenticar a virtualidade e aplicar o “poder” de alguns equipamentos, através de arquétipos estratégicos e vantajosos, de modo a engrandecer a nossa “urbanidade”?

Por decisão pessoal, o autor do texto não escreve segundo o novo Acordo Ortográfico.