O Ano começava a 21 de Março. Foi assim durante milénios. O Ano iniciava-se sob o apanágio dos céus com o Carneiro. Carneiro de carne, do velho latim.

Por essa altura já tínhamos, Homo Sapiens Sapiens, mudado de corpo. Tínhamo-lo feito em grande parte porque como a Ovelha tínhamos sabido, por suprema adaptação, que uma espécie tem tanto mais sucesso quanto os seus seres individuais cooperem entre si. Por ventura tínhamo-lo feito por imitação. Ao ver o rebanho que, então, seguíamos.

Seguíamo-lo porque a nossa ilusão é a ilusão de que o futuro é a compensação e o preenchimento por tudo e de tudo que nos falta no presente, de tudo o que não aconteceu no passado. Por essa altura e talvez ainda hoje, nessa ilusão, o cuidado do futuro distante, era inexistente. Por isso, então, tudo se centrava no conhecimento do desejo.

E, embora a construção do futuro de acordo com o nosso desejo seja uma ilusão, os desejos são o agente de mudança no Universo. Sem o saber, sem se dar conta e por isso fazendo bem o rebanho que seguíamos era a nós que ia mudando. Claro que é raro, mesmo raro que a mudança seja a imaginada. Mas é mudança. E mudança houve atras do rebanho.

Mudança que se operou em nós vinda da luta permanente com a matéria, luta com os lobos, escusos, com os outros habitantes do Planeta e sobretudo a luta com o seu próprio corpo: com a fome, com as doenças, para se manter saudável, da luta com os seus desejos, os seus medos, a sua imaginação, a sua inteligência, a sua estupidez, a sua loucura, o seu bom senso.

Nestas lutas a hipótese é que numas fazemos melhor que outras. Numas seremos diferentes por evolução, noutras estacaremos e ainda, por vezes, regredimos. Mas seguindo o rebanho fomo-nos alterando. Tanto que nem demos conta que o leite que em adulto nos deveria matar e que a princípio o fazia quando eramos adultos (e ainda mata de uma maneira geral os asiáticos que lhe são intolerantes) passava a ser alimento para toda a vida. E leite, o leite fizemos mudar quando, às tantas, o conservámos em queijo, em manteiga, em iogurte, esquecia-me do meu favorito, requeijão para dar energia quando precisávamos. E a ovelha, o rebanho, por essa altura olhou para nós e terá comentado. Eles, homo sapiens sapiens, ajudam-nos nesta luta mas já lhe ensinámos duas coisas: a força da entreajuda e até o fizemos mudar o corpo para perceber que pode fazer hoje para amanhã. Que pode prever. O queijo matar-lhe-á a fome daqui a anos.

E assim o rebanho ensinou-nos na primeira das lutas para a existência, a luta da Natureza, que há previsão. Que a previsão no mundo da matéria é bem mais segura que em todas as outras lutas. Atras do rebanho, o Homo Sapiens Sapiens foi mudando o corpo e foi, por isso, representando o mundo.

A representação do Mundo não é a verdade é um modelo para antever quando e onde vai acontecer o quê. Para prever, para planear.

E, atras do rebanho inventámos o gesto, a fala, e às tantas mudámos mudamos tanto que descobrimos a representação do mundo com desenho. E marcámos pedra, arvore, caminho, memoria, lembrança de passagem e com o desenho as paredes do Coa falam connosco há centenas de milhares de anos. Com o desenho chegámos à escrita que no dizer de Voltaire é a “pauta da música da voz”. E atrás do Rebanho inventámos os números. Hoje, a representação numérica é negócio de matemática.

E mais cedo ou mais tarde, sempre atrás do rebanho, o conhecimento de que ou o Planeta, ou o Sistema Solar, mesmo o So,l falharão vai forçar-nos a viajar e a colonizar a Via Láctea.

Por essa altura o Rebanho lá estará. Outro Rebanho. Por essa altura a carne terá outro aspeto. Os humanos, nós, também já nos alterámos tanto por causa do Rebanho. Por irmos atrás do Rebanho. Nós já não temos a anatomia que tínhamos. Os humanos modificaram-se no processo de evolução, de seguir o Rebanho.

Perdemos atributos nos sentidos quando pegámos numa pedra. Mudámos o corpo quando incluímos objetos no nosso corpo: a pedra, o osso, o pau e a lã. Tão estranhos à nossa Carne. Com a lã perdemos o pelo que nos cobria. O Rebanho até a pele nos mudou através do grande ciclo da lã: a ovelha é tosquiada, por alturas de Maio (dizem que é para libertar as ovelhas do calor. Mas sabem o que isola, isola. Se isola o frio, isola o calor.

Mas em Maio já faz calor para que a ovelha, especialmente às mais púdicas morram de vergonha mas não de frio. Ficam as ovelhas sem o velo. Segue-se a seleção da lã, nem muito em cima que está suja, nem muito em baixo que é curta. A seguir lavamos a lã depois de amolentada para ser seca e esguedelhada para ficar pronta para ser cardada. Se a carda for posta à roca e ao fuso de lá virá por fiação o fio de lã que torcido ou não já pode dar inicio à transformação que o leve até ser nossa pele. Pode-se torcer com fuso apropriado, ensarilhado para ser meada e a seguir para eu me recordar de ajudar, às minhas avós, a dobar.

Esta adição na pele permanente mudou-nos e com outros acrescentos mais permanentes até os sentidos foram reciclados na evolução. Sentidos para a viagem que aprendemos a fazer atrás do rebanho. Sentidos para a luta de defender o Rebanho de nós próprios, de outros que entretanto encontramos na transumância.

Fizemos Leis, ditámos cartas, forais, para ir em Paz atrás das ovelhas. Descobrimos territórios. Os que não são da Serra, a Serra. Os que eram da Guarda as Terras de Estremo. Por esses caminhos construiu-se a Pátria.

Atrás do rebanho a variedade de objetos que fazem parte da Carne Humana deram lugar a um corpo vastamente diferente do que já foi o do Primeiro Homo Sapiens Sapiens.

O progresso do futuro já não depende só da evolução fisiológica mas da ação da inteligência sobre o mundo material. Mas será prejudicado, ou até parado, se faltar a capacidade de pensamento intelectual criativo, se estiver ausente o desejo de aplicar esse pensamento ao Progresso da Humanidade.

Confrontamo-nos com pensamento especializado, individual, ignorante de todos os outros conhecimentos, saberes e precisamos de um sistema inteligente para a distribuição coletiva de conhecimento de tal forma que cada trabalhador tenha a quantidade de que necessita de fora do seu campo de ação numa forma que lhe cause o mínimo de transtorno em gasto de energia. Ainda, apesar de milhares de anos atrás do rebanho, não aprendemos como o fazer. Alguns de nós aprendem-no mas, quase sempre, só num conflito. O problema é, de facto, igual ao das comunicações de um Exército em Ação. Na vitória, para a vitória do coletivo que é o Exército contribuíram, ao mesmo tempo, a originalidade intelectual, a hierarquia, o poder da organização e a rede de comunicação.

Hoje, uma vasta maioria ainda não aprendeu tudo com o Rebanho. Mudou de fisiologia por causa do Queijo, da Manteiga, do Requeijão, do Leite. Descobriu que a forma mais avançada de evolução é a cooperação. Inventou o gesto, a fala, a geometria e a aritmética como representação do Mundo. Fez-nos a casa.

Sim a casa. O Rebanho aceita. A Casa, a nossa Casa é um lugar onde se lá formos somos aceites, recebidos. Casa é onde nos recebem mesmo que não o mereçamos. Casa é onde há a dita, a sina, de nos aceitarem com o destino que temos.

O progresso, mesmo o progresso científico depende de toda a Humanidade e a Arte é uma arquitetura geral, de grandes dimensões, ou apenas molecular, atómica ou nuclear e dá forma a uma infinidade de possibilidades vindas da linguagem da representação científica do Mundo: a Poesia é a expressão da complicação do Universo; a Religião, o desejo que acompanha o Homem no Universo da Compreensão e da Esperança.

Mas, hoje garantem-nos que o bem não chega para todos. Aconteceu assim desde que o capital, infecto-contagioso, ruim saiu à rua. E, hoje, garantem-nos que se olharmos o horizonte. O horizonte não é linha. É difícil muralha. Por detrás da muralha uma humanidade plena, subordinada a algo como… as prestações da divida, atirada, baloiçada sem certeza no barco da Razão Pura por algo como… condições de vida.

E, o túnel do tempo vai adiante levando-nos.

E o que nos ensina há milénios a Ovelha e o Rebanho é que a muralha, o redil se deita abaixo desde que nós Homo Sapiens Sapiens, que a ovelha e o rebanho alterou na fisiologia, na descoberta, no comportamento, não demos baixa à Alegria. Não daremos baixa à Alegria!

A ovelha e o rebanho tem vindo a ensinar-nos e nós temos recusado aprender que não pode ser fácil para o Homo Sapiens Sapiens aprender a arte de perder.

Junto ou disperso, a ovelha e o rebanho que tanto nos modificaram tem um enorme sucesso. Há hoje no Planeta mil milhões de ovelhas.

Algumas, como pequena compensação do que fizeram, fazem e farão por nós, vivem no Paraíso da Serra de Estrela e da Meseta. Vejam só como “Pastam mansamente os gados pela encosta/Naquele fundo de tarde em que a ovelhinha gosta/De tonsurar giesta, e a ribeira chora”.

E é pequena compensação porque nós somos em grande parte o que o Rebanho de quem vamos atrás (não se iludam com as aparências) nos fez, nos fez descobrir, e naquilo que ainda não sabemos.

O certo é que a Ovelha, o Rebanho porque nunca fez contabilidade neste encontro entre espécies, ousam dar destino à Humanidade. Pensamos, sempre, que é ao contrário. Que a Ovelha precisa de guardada. Precisa. Como nós da casa onde seremos recebidos com o destino que temos. Sem o rebanho não seriamos nós e não teríamos casa. E sem Ambos não teríamos História.