Será que a imagem da justiça não acabou por perder a pouca pigmentação que ainda albergava?

Na Europa, mais concretamente no final do século XX, começou a existir uma propensão para o investimento em programas ligados às infra-estruturas judiciárias. A disseminação das novas tecnologias; os princípios de racionalidade; os novos arquétipos de gestão de processos; e os renovados instrumentos de resolução de antagonismos constituíram as principais fisionomias dessa “arrumação”.

Na verdade, escrever sobre a reforma do mapa judiciário, tema que se coalha na reestruturação dos tribunais portugueses, é uma empreitada bastante destemida e arrojada. Os tribunais, pela sua história, cronologia e disposição, parecem ser precisamente as únicas instituições públicas do Estado com predisposição e competência para disciplinar, doutrinar, regular e coordenar as altercações, as controvérsias e as argumentações, entre entidades e entre indivíduos com aspirações concorrenciais de autonomia e de soberania.

O aparecimento de “novas” configurações de marginalidade; o crescente e pernicioso jogo de interesses; o poderoso e nocivo estatuto das aparências; a ampliação ininterrupta das desigualdades sociais; e a própria mediatização da justiça acabaram por constituir contextos que modificaram visceralmente o encadeamento social do funcionamento das “regulamentações” judiciais. Deste modo, as reestruturações dos sistemas de justiça passaram a ser contempladas como vértices muitíssimo importantes dos múltiplos e dissemelhantes Governos, havendo um permanente desassossego com os índices de competência, qualidade e perspicuidade.

De acordo com a proposta de remodelação do mapa judiciário, o Ministério da Justiça extinguiu algumas dezenas de tribunais em todo o País. A sugestão foi imediatamente entregue ao “Governo” Troika. O documento, confeccionado pela Direcção Geral da Administração da Justiça (DGAJ), admitiu que as transformações propostas acarretariam alguns, para não escrever múltiplos, episódios de desacordo e de resistência social.

Na realidade, podemos asseverar que esta reforma foi mais uma prova que aqueles iluminados, a quem apelidámos de Governo, não conheciam, nem tão pouco compreendiam, o território que administravam, ou melhor desgovernavam. A proposta agasalhou todas as fragrâncias e todos os ingredientes para se transformar num autêntico fracasso. Esta reorganização, ao contrário daquilo que se apregoou, nunca procurou introduzir racionalidade e eficácia no universo da justiça com base em preceitos científicos antecipadamente calculados e asseverados. Os portugueses rapidamente tiveram a noção que somente o Governo é que ainda não tinha concebido um diagnóstico dos verdadeiros problemas que atormentavam e escoltavam a justiça portuguesa.

Qualquer programa de desenvolvimento deve estar relacionado com o bom funcionamento dos serviços e das instituições. Espontaneamente, e tal como tem sucedido com outros serviços, os portugueses detectaram na altura que a “doutrina” judiciária tinha vindo, ainda que paulatinamente, a alinhar-se às dinâmicas e às vivacidades do território. Porém, a população também aquartelava a noção de que o planeamento do sistema de justiça português continuava a aconchegar inúmeras lacunas, acabando por ser essa situação a principal responsável por boa parte das insuficiências e ineficiências que desfilavam no universo da justiça.

Na realidade, as metodologias de gestão tradicionais, que são manifestamente burocráticas, desequilibradas e vagarosas, não respondem, nem de longe, nem de perto, à quantidade e à corpulência dos processos judiciais. Um harmónico sistema judiciário acaba por significar um alargamento substancial da qualidade de vida dos cidadãos. Logo, será importante e justo referir que a reforma da justiça tinha, mais tarde ou mais cedo, que ser consumada, mas nunca nos moldes que o Governo de coligação ovacionou e perfilhou.

A diminuição escarpada e expressiva de magistrados e oficiais de justiça; a reafectação inopinada de milhares de processos a novas “brigadas”; o reagendamento de audiências e julgamentos; a mutação física de instalações; e a deslocação de serviços, colaboradores e equipamentos, tudo em simultâneo e num breve espaço de tempo, implicaram a imobilização e obviamente a colheita de consequências infaustas para as conveniências das populações. Será que a imagem da justiça não acabou por perder a pouca pigmentação que ainda albergava?

Na verdade, a calorosa propaganda em relação à reestruturação do gráfico judiciário foi decisiva para amamentar elevadas esperanças quanto ao novo regime de disposição judiciária. Contudo, essas expectativas e ambições velozmente ficaram goradas com tamanha insensatez do Governo.

É certamente oportuno afirmar que a capacidade de resposta à litigância judicial está visceralmente associada à “fertilidade” judicial. Esta, por sua vez, está subordinada a uma panóplia de encadeamentos como sejam a preparação prática e objectiva dos juízes, e a própria “topografia” dos processos. Mesmo com a edificação, através da “inclusão” de recursos humanos diversificados e equipamentos informáticos melhorados, de alguns serviços de justiça, esse novo protótipo nunca perfectibilizou o labor judicial. Tinha sido fundamental para o País que o Governo tivesse tido a consciência de que as estruturas judiciais não devem estar unicamente subjugadas à componente financeira.

A nova disposição dos tribunais não evitou que as diligências desfilassem nos “novos” juízos, acarretando, essa circunstância, mais encargos para as partes “directamente” envolvidas, bem como para as testemunhas. Logo, era mais do que provável que as testemunhas, não possuindo, na sua “generalidade”, qualquer tipo de interesse objectivo e palpável no processo, tentassem, através dos mais diferentes meios e mecanismos, evitar a sua própria comparência em tribunal. Esta conjuntura interferiu, invariavelmente, na produção de prova e na consequente clarividência dos factos.

Numa sociedade aberta, capitalista, globalizada, embaraçosa, tumultuosa e multidisciplinar, o poder judicial apresenta-se como uma espécie de agente participante do sistema de Governo. Os tribunais devem ser observados e interpretados como efectivas instâncias geradoras de direito e de equidade, que vão regulando e solucionando as incompatibilidades sociais. Salientar que algumas dessas “desinteligências” sociais hospedam semblantes politicamente relevantes.

Portugal, nas últimas décadas, sofreu fortes transformações demográficas, económicas e sociais. A velocidade, a eficiência e a imparcialidade dos serviços públicos constituem temas que, pela sua importância, centralizam boa parte dos debates contemporâneos. Estas “inquietações” também estão interligadas à optimização dos recursos humanos, técnicos e territoriais. Qualquer reforma que incida sobre o mapa judiciário deve estar impreterivelmente em assonância com outros vértices administrativos, de forma não só a acautelar a prodigalidade de dissemelhantes mapas territoriais, como também a possibilitar melhores e maiores índices de articulação e de envolvência com determinadas entidades que, pelas suas funções, estão intimamente ligadas aos tribunais. Será que as forças de segurança não devem ser saboreadas como importantes entidades associadas aos tribunais?

A reforma que o Governo de direita implementou não dispensava a meditação e a análise de toda a morfologia constitucional da jurisdição, bem como da legitimação e da “superintendência” democrática, e do imenso significado da deliberação da liberdade e “largueza” judicial. A reforma judiciária portuguesa deveria ter sido degustada numa perspectiva de adaptação às metamorfoses sociais. A lógica “territorial” e económica nunca deviam ter constituído as únicas e elementares ambiências valorizadas.

A reforma do mapa judiciário também não devia ter sido separada da reestruturação da própria política pública de justiça, devendo esta assentar num arquétipo integrado de resolução de processos. Somente nestes moldes se ampliam e se “emancipam” os instrumentos extrajudiciais com vista à “nomeação”, em formatos sólidos e definitivos, dos vocábulos cidadania, responsabilidade e justiça.

É naturalmente indispensável, sem ter o mínimo de receio em acordar os avejões da história, reconsiderar e reflectir bastante sobre as propostas que se pretendem homologar e, simultaneamente, acomodar as inspirações e as insinuações das práticas alternativas, fazendo cedências aos confrangimentos das circunstâncias congénitas dos tribunais. Será que os tribunais devem desfilar numa orientação de abandono social?

A medula e a amplitude de qualquer reforma estão profundamente associadas aos padrões de problemas, obstáculos e assédios mais significativos de uma determinada conjuntura. Um rigoroso diagnóstico, baseado em certa medida nos contextos políticos, económicos, sociais e culturais, assim como um conhecimento total das diversas fragrâncias que perfumam o País devem constituir os principais instrumentos para a proficuidade das reorganizações. A verdadeira reforma do mapa judiciário terá forçosamente que “singularizar” a justiça enquanto serviço público. Será que uma justiça barata não é tão injusta como uma justiça vagarosa e pouco cristalina?

A actual ministra da Justiça, Francisca Van Dunem, vai reabrir os 27 tribunais que a sua antecessora, Paula Teixeira da Cruz, encerrou pelo País e substituiu por secções de proximidade no âmbito do Mapa Judiciário que entrou em vigor em Setembro de 2014. A medida, tomada três meses depois do Governo PS ter entrado em funções, representa mais uma decisão contra a reforma executada pelo anterior Governo PSD/CDS. Van Dunem entende que os cidadãos não devem percorrer dezenas de quilómetros para poderem aceder à Justiça e que os tribunais do interior não devem estar fechados a julgamentos. Será que a reforma do Judiciário, perpetrada pelo anterior Governo, não foi uma autêntica catástrofe? Será que os cidadãos não ficam mais “protegidos” com a reabertura destes tribunais? Será que esta decisão não promove a democracia e a igualdade?