Perante este cenário de guerra, os nossos problemas do quotidiano transformaram-se em exíguos nadas e ficam visíveis as nossas próprias fragilidades.

O jovem que sucumbiu, a criança que chora, a mãe que tem o coração desfeito e o pai que está desaparecido. O brilho dos olhos desapareceu, o sorriso foi extorquido e os rostos foram atingidos para toda a vida. Os laços emocionais enfraqueceram no meio dos pretextos epidérmicos e insanos. Os cadáveres armados e fardados, as fotografias em papel molhadas com lágrimas. Mãos claudicantes que sem experiência e sem vontade foram empurradas para a morte.


O amor, a vida e a paz vilipendiados por um escroque, um verdadeiro ignóbil. Os avós ficam privados da companhia dos netos. Os pais ficam sem os filhos e os filhos ficam sem os pais. Famílias felizes que estão a ser destruídas. A mãe jovem que pega ao colo a filha morta. Derradeiros espasmos no meio, ou fora, dos escombros. A aflição perpétua. Ataques em qualquer lugar e a qualquer hora. A esperança que se dilui, ainda que lentamente. Os sonhos ficam tão distantes que muitos deles se tornam inalcançáveis.
As janelas partidas e os edifícios que já foram edifícios. Os pátios das escolas deixaram de ser coloridos e expressivos. A ponte e a estrada ruíram. O azul e amarelo estão cobertos de sangue. Os pássaros cinzentos que matam indiscriminadamente. As explosões que ecoam por todo o território. Os jovens que não querem matar. Algumas imagens impactantes que contrariam a guerra. As manifestações contra a guerra interrompidas indecentemente. As conversações inconsequentes, unicamente “para inglês ver”. A contrainformação que volta a ter protagonismo. O património e a identidade que desaparece, o Mar Negro repleto de sangue e as praças outrora abertas.


As crianças em cima das malas de viagem. O abraço amargo do medo e da incerteza. O comboio militar pintado a ódio. Desapareceram as flores dos jardins e a relva ficou suja e cinzenta. A proliferação dos incêndios e as centrais nucleares inquietas. A hostilidade de quem não quer ser hostil e não se revê na guerra. As sanções que não conseguem abrandar a carnificina. Os frágeis e importantes corredores humanitários. A violação dos direitos humanos e a impossibilidade de negociar a paz com uma besta. Milhões de refugiados e a solidariedade que felizmente existe.


A aposta no medo para atingir os objectivos em contraste com a conquista da opinião pública ocidental através das novas tecnologias e das redes sociais. O impressionante acompanhamento mediático. Um herói que rejeitou a boleia dos Estados Unidos para abandonar a Ucrânia. Um insano que coloca em causa o direito fundamental dos Estados soberanos, ou seja, a escolha do seu destino e dos seus aliados. A dignidade humana que os ditadores não têm.


Numerosos e pomposos tratados diplomáticos arremessados para o palco da insignificância. Os direitos internacionais violados constantemente e sofregamente. O inimaginável, mas não surpreendente, está a acontecer. As perniciosas e controversas ambições geopolíticas. Um demente completamente vazio de clemência e de humanismo. A repugnante tentativa de recuperação da glória imperial.


A desvigorosa determinação da União Europeia e da Nato para amputar o inventário de horrores. Corpos queimados e corpos de arremesso. Um gélido inferno patrocinado pelo despotismo. Caixões de balsámos e portões sem edifícios. O caminhar, em lágrimas, de ruína em ruína.


Um povo valente e perseverante que resiste a uma invasão abjecta, ilegítima e bárbara. A esperança azul e amarela que procura combater o medo que um animal disseminou. A narrativa imunda de vitimização que alimenta o nacionalismo russo. Os pactos oportunistas e as delicadezas do direito internacional. As leis da guerra que são menosprezadas e o labiríntico sistema energético europeu. A Europa que fornece balas à Ucrânia, mas não dá um único tiro.


Perante este cenário de guerra, os nossos problemas do quotidiano transformaram-se em exíguos nadas e ficam visíveis as nossas próprias fragilidades. Urge reflectir e questionar os nossos próprios pensamentos.


A menina morta por uma bomba em Mariupol. A menina morta a tiro em Kiev. A menina que estava no jardim-de-infância e foi morta num bombardeamento em Okhtyrka. Tantos crimes de guerra perpetrados a mando de um quadrúpede.


As curiosas opiniões dos oligarcas russos que enriqueceram à custa de um vasto conjunto de privilégios, fazendo negócios com o Estado. Algumas expressões da Guerra Fria voltaram a ouvir-se. A maléfica intenção de dialogar sem ceder. Acredito, acreditamos, na letra da canção solidária “Ucrânia Livre” dos UHF: Ucrânia livre, vencerá!