Na superfície do exercício da prostituição, podemos destacar a Prostitutionsgesetz. Trata-se de um diploma legal ou constitucional que passou a regimentar, como prática de comércio, a prostituição na Alemanha. Esta “diligência” lícita alicerçou a legalização da prática de prostituição, legitimando a prostituição como uma prestação de serviços, em configurações de comércio sexual voluntário e livre, desde que praticada entre adultos e de modo consciente. Aos profissionais do sexo foram reconhecidos direitos como sejam: a segurança social; e a possibilidade de encetar uma acção judicial contra os clientes que não pagam o serviço sexual. Esta conjuntura acabou por motivar transformações significativas na medula do código civil alemão. Será que não é interessante dissecar este tipo de disposição, tendo como pano de fundo a sua hipotética aplicação no nosso regime jurídico? Será que o regime jurídico português reconhecerá o contrato de trabalho prostitucional? Será que não é fundamental analisar e compreender o conceito constitucional de profissão?
O conceito legal de profissão advém do direito de livre ingresso na profissão, bem como dos direitos, liberdades e garantias dos trabalhadores. No ordenamento jurídico português continua sem existir um normativo legal semelhante ou equivalente ao Prostitutionsgesetz. O código civil português, mais concretamente no art.º 280, refere que: “É nulo o negócio jurídico cujo objecto seja física ou legalmente impossível, contrário à lei ou indeterminável.”; e “É nulo o negócio contrário à ordem pública, ou ofensivo dos bons costumes.” Será que este artigo não impõe alguns esforços e meditações suplementares de prudência, de discernimento e de concisão? Será que os bons costumes, através dos tempos e dos espaços, não representam um conceito mutável? Será que não é importante perceber a tutela outorgada à prostituição pelo código penal português? Será que a mesma não é expressa na consecutiva inculpação dos agentes que beneficiam com a exploração da prostituição, determinando que qualquer correspondência de trabalho nessa circunferência seja perfilhada como ilegítima?
No cabimento da jurisprudência europeia parecem despontar indicadores na direcção de conceder tutela lícita ao serviço ou prestação sexual, salientando o Acórdão do Tribunal de Justiça das Comunidades Europeias (TJCE), de 20 de Novembro de 2001, que determina que a prostituição constitui uma prestação de serviços paga ou remunerada. Logo, podemos seguramente asseverar que a mesma é abraçada pelo conceito comunitário de actividades económicas, representando uma actividade económica legal. Será que no texto do Acórdão acima referenciado existe alguma alusão à prática de prostituição enquanto profissão e, naturalmente, como objecto ou matéria de contrato de trabalho? Como são caracterizadas nesse documento, no que respeita a sua licitude ou ilicitude, as actividades de favorecimento da prostituição?
Ao versarmos o assunto referente à regulamentação da prostituição em diversos Países europeus, constatamos facilmente, e como configuração comum, a eminente complexidão e dissonância de entendimentos e raciocínios relativamente à prática em questão. Um exemplo paradigmático desta circunstância acaba por ser a disparidade de dissertações em vigência numa área territorial que almeja a concertação da legislação, qualificada pelas dissemelhantes percepções relativamente aos valores em “discussão”.
Por exemplo na Holanda, os cidadãos que se prostituem pagam impostos e segurança social, usufruindo das normas e dos estatutos que alicerçam o direito laboral e o subsídio de desemprego. Na Holanda a prostituição passou, desde o início do século XXI e apesar de subordinada a uma regulação “especial”, a incorporar o conceito de profissão, ou seja, é saboreada como uma actividade lícita. Todavia, a prostituição forçada ou “constrangida”, e a prostituição de menores continuam a “obedecer” a paradigmas sancionatórios. Será que a Holanda não acostumou já a comunidade internacional a inúmeros contextos de condescendência relativamente a determinadas práticas e ocupações? Será que esses contextos não ficam bem demonstrados na despenalização do consumo e da venda de algumas drogas?
Retornando novamente à Alemanha, referir que a prostituição está legalizada e regularizada desde o ano de 2000, sendo contemplada como uma profissão inserida na categoria de prestação de serviços. Analogamente à “condição” holandesa, os indivíduos que se prostituem executam o pagamento das contribuições sociais, da mesma forma que qualquer outro trabalhador. Embora o exercício da prostituição livre esteja regulamentado, a extensão da tutela penal também se evidencia como bastante ampla, ao incluir quase todos os géneros de exploração da prostituição. Realçar que o código penal alemão conjectura e condena o delito de lenocínio. Na realidade, a Alemanha pune algumas situações como sejam: o “zelo” às pessoas prostituídas com o propósito do lucro; o incentivo à prostituição nas situações em que a pessoa prostituída se encontre em dependência pessoal ou económica; a violação do conjunto de interdições convencionado para a prática da prostituição; a profanação das fronteiras geográficas e temporais respeitantes ao exercício da prostituição; e o fomento à prática da prostituição nos casos em que os cidadãos prostituídos sejam menores de idade.
Em Itália, e analogamente ao regime jurídico português, a prostituição, apesar de não se encontrar regulamentada, não constitui uma actividade proibida, sendo o seu induzimento, favorecimento ou exploração, por parte de terceiros, susceptível de responsabilidade criminal. Por mais palestras, dissertações e justificações acerca dos valores em causa e os deducionais alicerces para a sua criminalização ou regulamentação, a verdade é que os indivíduos que se prostituem são considerados autênticos objectos cujo valor comercial depende das suas características físicas e performances sexuais. Será que a sociedade não está perante um antagonismo axiológico, ou seja, um conflito dos valores morais? Será que esse conflito não advém da própria evolução da sociedade e da humanidade? Será que não são os Estados que agasalham a obrigação de deliberar e de perfilhar configurações capazes de responder a esta “manifestação”, considerando os valores políticos, sociais, culturais e económicos?
O direito penal procura a salvaguarda e a tutela de bens jurídicos. Estes despontam de valores reconhecidos como fundamentais na vida em sociedade. Inicialmente o direito penal assume-se como um instrumento que se pretende proveitoso e eficaz na peleja contra os comportamentos passíveis de ameaçar a salutar convivência social, tentando ininterruptamente restringir ou abreviar a criminalidade. Será que não é incomensurável o número de cidadãos que se entregam à prostituição? Será que não é importante a elaboração de uma base de dados concernente aos estabelecimentos que se dedicam à prática da prostituição? Será que a concepção de um levantamento nacional das pessoas que se prostituem não era pertinente? Será que a classificação de determinados valores como bens jurídicos não é um processo intrincado e carregado de subjectividade? Será que a teoria do bem jurídico não acaba por representar um dos sustentáculos do próprio direito penal? Será que esta matéria não deve ser alvo de mais e melhores estudos, análises e cogitações? Será que actualmente os Estados e a legislação penal, relativamente ao avanço e incremento das práticas de natureza flagiciosa, não enfrentam um volumoso repto?
As organizações criminosas devem ser analisadas e degustadas como autênticas ameaças às estruturas dos próprios Estados, tanto na manutenência da ordem pública, como no equilíbrio e desenvolvimento da economia. Surgem novos formatos de crime, qualificados pelo abandono das configurações tradicionais de crime e pela disposição altamente profissional e competente das suas redes, que dificultam a detecção e a consequente punição. Será que os direitos, a democracia, a tranquilidade, a liberdade e o destino da humanidade não ficam em xeque com a existência e a evolução deste género de organizações? Será que o direito penal não deve contribuir, de modo significativo, para a manutenção do equilíbrio público, dos valores da sociedade e da harmonia dos Estados de direito? Será que o direito penal pode ser contemplado ou interpretado como mecanismo exclusivo ou eliminador no combate aos novos fenómenos da criminalidade? Será que a multiplicação dos regulamentos penais inconsequentes e vazios; os crimes de perigo elevado e abstracto, e a responsabilização penal das pessoas colectivas não constituem configurações que dificultam a “acção” e a abrangência do próprio direito penal? Será que o direito penal não constitui uma das principais particularidades de um Estado de direito democrático? Será que a concepção do Estado de direito democrático não imortaliza o direito penal ao serviço do cidadão?