O ilustrador, que se formou a si mesmo, e que conhece cada traço das centenas que compõem cada uma das gravuras, incluindo os mais impercetíveis, disse à agência Lusa que o seu trabalho passa por desenhar achados arqueológicos, misturando a componente técnica e ilustrativa, para demonstrar “a volumetria” daquilo que se pretende representar à escala, tendo em conta diversos objetos ou figuras, num trabalho que começou num campo arqueológico romano, em Braga, quatro décadas atrás.
“Tenho uma aptidão natural na área do desenho científico, e foi um caminho que fiz caminhando, porque em Portugal não havia escolas de formação nesta área. Hoje já começam a aparecer uns cursos de formação profissional, neste segmento de arte”, disse à Lusa António Barbosa.
É a arte rupestre do Vale do Côa que, ao longo das três últimas décadas, tem colocado a arte deste autodidata nas publicações mundiais ligadas à arqueologia e às ciências que necessitam de exemplos ilustrados, para que os investigadores tenham uma melhor e maior perceção da realidade de cada um dos sítios ou objetos, com potencial arqueológico.
António Barbosa teve o seu primeiro contacto com as gravuras do Côa em 1993, quando ainda vigorava o extinto Plano Arqueológico do Vale do Côa, e onde quer permanecer até à situação de reforma, o que deverá acontecer a breve prazo.
“As primeiras ilustrações, quando do levantamento das gravuras datadas do Paleolítico Superior existentes no Vale do Côa, foram desenhadas por mim”, concretizou o ilustrador científico.
Com quase 30 anos a reproduzir com minúcia, as centenas de riscos contidos em cada painel do Parque Arqueológico do Vale do Côa (PAVC), é uma tarefa difícil para António Barbosa calcular o número de gravuras replicadas. O ilustrador aponta, porém, para cerca de 800 gravuras já desenhadas e decalcadas.
“Cada figura rupestre gravada nas rochas de xisto [do parque] tem centenas de traços, uns mais fininhos de difícil perceção, outros mais largos e mais profundos, o que torna este trabalho muito exigente do ponto de vista técnico, porque são precisas muitas horas para replicar tudo numa folha de acetato, ou noutros materiais”, vincou.
A concentração é, para o ilustrador científico, um dos segredos desta profissão, já que são centenas traços que muitas vezes se tocam, o que pode alterar o resultado final e o rigor da reprodução da cada uma das criações, que são património da humanidade.
Efetuado sobretudo de noite, devido à chamada “luz rasante”, que oferece uma melhor interpretação das gravuras picotadas na rocha, António Barbosa garantiu à Lusa que o seu trabalho de ilustrador científico é muitas vezes realizado em condições adversas, devido às grandes amplitudes térmicas deste território do Vale do Côa.
“O trabalho de levantamento é quase sempre feito à noite devido à luz rasante. As temperaturas podem ir aos quatro ou cinco graus negativos, no inverno. Depois há o calor de verão, com muitos insetos à mistura”, descreve o técnico.
As gravuras já registadas nos acetatos ou no látex, utilizado pelo desenhador, são de diferentes dimensões; podem ultrapassar os três metros de comprimento, enquanto as mais pequenas podem ficar pelo tamanho de um dedo polegar.
“Os trabalhos depois de chegarem dos campos arqueológicos são digitalizados e passados por um programa de desenho vetorial, onde refaço todos os traços que recolhi das peças originais gravadas na rocha, e que foram passados para o acetato numa reação direta com o original”, explicou.
Para António Barbosa, os artistas do Côa até eram bastante rápidos para picotarem na rocha as suas criações, tendo em conta que era pedra contra pedra.
“Um homem do Paleolítico Superior poderia demorar apenas várias horas para desenhar uma figura de um auroque [boi selvagem]. Segundo a técnica da picotagem e após várias experiências numa escala normal de uma figura de 50 a 60 centímetros, o tempo gasto para a realizar poderia rondar as duas horas de trabalho”, explicou.
Na vida e no percurso deste desenhador científico, e ao fim de 40 anos de trabalho, também ficou alguma mágoa, porque a sua função nunca foi reconhecida como de um técnico superior, apesar da responsabilidade do seu trabalho que vai servir de base “à nata dos investigadores da arte rupestre ou de outras eras cronológicas”.
“Sou autónomo e não tenho de responder a uma hierarquia como acontece noutro tipo de desenhadores. Trabalho com arte complexa como é a do Côa. No fundo, a minha escrita é o desenho”, enfatizou António Barbosa, o último dos desenhadores científicos em Portugal.
António Barbosa garante que a sua arte vai continuar, já que há pessoas interessadas, e o PACV vai ter um novo desenhador científico para dar continuidade a um trabalho rigoroso, como é o levantamento da arte do paleolítico superior no Vale do Côa.