À Caritas chegam diariamente pedidos de ajuda para pagar as contas de pessoas a quem a pandemia tirou rendimentos e o emprego. Quase 80 mil euros já foram entregues para pagar rendas ou medicamentos e cresce a necessidade de apoio alimentar.
Eugénio Fonseca, presidente da Caritas Portuguesa, que coordena as várias Caritas Diocesanas espalhadas pelo país, não tem dúvidas de que a crise provocada pela pandemia de covid-19 é a que tem maior impacto no agravamento da pobreza nos últimos 100 anos.
A propósito do Dia Internacional para a Erradicação da Pobreza, que se assinala a 17 de outubro, o presidente da Caritas aponta o dedo ao avanço rápido do acumular de riqueza “nas mãos de uns poucos” e à disparidade na sua distribuição para sinalizar o contraste com os “ténues sinais” de eliminação da pobreza, muito por falta de “vontade honesta e decidida”, recusando ainda “ideias fatalistas de que a pobreza é algo que sempre acompanha o mundo”.
À recusa da inevitabilidade da pobreza o dia-a-dia contrapõe-lhe as consequências da pandemia no seu agravamento em Portugal.
“Nós vamos viver este dia num contexto de grande preocupação, não só em Portugal, mas a nível do mundo inteiro. Surgiu este problema sanitário que arrastou consigo uma contração económica bastante significativa. Na Caritas temos sentido isso com um número de crescentes novas situações de pessoas que nunca procuraram o auxílio da nossa instituição e que agora o estão a fazer até para a satisfação de necessidades que na crise anterior apareceram mais tarde, como as necessidades alimentares”, disse.
Desde o início da crise epidémica a Caritas já apoiou com a entrega de vales para compra de alimentos em supermercados 4.660 pessoas, um apoio de 58.465 euros, pago com verbas próprias da Caritas Portuguesa canalizadas para uma linha de apoio específica de combate aos efeitos da pandemia no valor de 150 mil euros.
Se a alimentação é a ajuda que envolve um maior número de beneficiários, os apoios para pagar rendas, eletricidade, medicamentos e exames médicos são o que mobiliza uma verba mais avultada, de cerca de 77 mil euros.
As rendas representam 61% dos pedidos do montante já gasto, já os pedidos de ajuda para pagar medicamentos e exames médicos representam 17% desse total.
“As pessoas preferiam pedir ajuda imediatamente do que endividar-se com moratórias”, disse Eugénio Fonseca, referindo ter conhecimento de que já há empresas de gás a fazer cobranças de moratórias em valores incomportáveis para agregados familiares sem rendimentos.
Segundo Eugénio Fonseca, a maioria dos pedidos de ajuda chega de quem ficou desempregado, mas também de quem teve uma quebra nos rendimentos e de outra franja muito apoiada pela Caritas, os migrantes, que manifestam junto da instituição a vontade de regressar aos países da origem, um apoio assegurado pelo Estado e para o qual são encaminhados.
A estas cerca de 5.700 pessoas apoiadas pela linha específica de apoio para a pandemia juntam-se outras 50 mil que pediram ajuda às Caritas diocesanas no primeiro semestre. Só houve capacidade de resposta para 26 mil.
“Claro que não pudemos atender a todas, não há recursos suficientes. As Caritas diocesanas não puderam fazer peditório nas ruas e não tiveram o ofertório das missas. Isto veio criar um desaire muito grande na contabilidade das próprias Caritas”, sublinhou Eugénio da Fonseca.
Atualmente chegam pedidos de ajuda de novos universitários, que conseguiram uma colocação, mas não têm dinheiro para se matricular e pagar um quarto. Antes tinham sido os finalistas, que precisaram de pedir ajuda para pagar a última propina para conseguir obter o certificado de conclusão do curso.
Mesmo sem capacidade de ajudar, a Caritas procura encaminhar para outras instituições que possam dar as respostas necessárias.
“Nós já vínhamos de uma realidade com cerca de dois milhões de pobres. É bom não esquecer, porque corremos o risco de criar medidas especiais, programas conjunturais para as vítimas da covid-19, mas esquecendo que há gente que vivia na pobreza e que se não continuarmos a atender às suas necessidades cairão na miséria”, disse Eugénio Fonseca.
A proposta de Orçamento do Estado para 2021 é “a possível face às dificuldades do país”, mas traz algumas medidas elogiadas pelo presidente na Caritas no âmbito do combate à pobreza, como o reforço do Serviço Nacional de Saúde e o aumento do valor do limiar da pobreza para 502 euros, ainda que neste último ponto reconheça que muitas famílias só o vão conseguir atingir com “rendimentos de substituição até que sejam criados postos de trabalho”.
Eugénio Fonseca reconhece que o aumento das pensões mais baixas em 10 euros é um valor baixo, mas admite também “o esforço” que representa para o orçamento, tendo em conta o universo de beneficiários.
A maior dúvida nas medidas de apoio é com a medida que alivia a retenção na fonte de IRS, uma vez que Eugénio Fonseca entende que o benefício de um pequeno aumento de rendimento por mês é “menos significativa” que a poupança que as famílias faziam com o valor do reembolso.
Os últimos dados do Instituto Nacional de Estatística (INE), divulgados em maio, indicavam que o risco de pobreza atingia 1,8 milhões de portugueses em 2018, uma percentagem inferior a anos anteriores, mas acima da média europeia e com uma incidência mais elevada nas crianças.
“Em 2018, 18,5% da população com menos de 18 anos vivia em condições de pobreza, face a 16,9% da população em idade ativa e 17,3% da população idosa”, de acordo com os dados divulgados pelo INE.
As estatísticas mostram também que ter rendimentos não elimina o risco de pobreza: em 2018 atingia 10,8% das pessoas empregadas e 15,2% dos reformados.
E apesar do aumento do emprego, em 2018 aumentou o risco de pobreza para as pessoas em situação de desemprego, para os 47,5%, contra os 45,7% do ano anterior.