Do Porco, do Marrano; Bem, primeiro não se recomenda: são os aromas do cortelho.

Mas entre o cheirete da pocilga e o cheirinho das carnes, dos ossos, das cartilagens, do sangue, da pele do bicho vão meses de farelo seguidos de bolota e o encontro, nefasto para o bicho de fausto para o Homem, com uma faca manejada por mão decidida, capaz e eficaz.

A mudança ocorre quando os dias vão curtos e frios, quando as ribeiras correm entre gelos, quando a lareira está acesa e é um nunca mais acabar de jogar às cartas e fazer renda. Por intervalo há que dar atenção ao vivo mas quanto possível e baste. Tudo o resto é pensado para a matança; a Família, os Vizinhos, os Amigos. A minha tia Antónia é quem ia buscar o Marrano, a maioria das vezes para cima das doze arrobas, ao cortelho. Confessou-me que era a única vez que traía um ser vivo. E, sentia-se mal até que começava o trabalho das Mulheres. Aí, como sempre são as Mulheres que cortam e operam a transformação. E o corpo inerte e exangue que os homens fizeram do marrano esperto e vivo depois de pendurado no chambaril e passado um dia, é feito em aromas e sabores para os dias próximos, os mais afastados e para todo o ano. Aqui começa verdadeiramente uma pequena ressurreição, o Porco morto, pendurado, exposto acende o cheiro, aguça o paladar, é um regalo para a vista. Talvez os hindus tenham um pouco de razão com a roda da vida. Não sei. Sei é que o dia é de Matança. Curiosamente esta matança é apenas de um ser. Matança costuma ser de uma multidão. Mas no frio da meseta, Matança é apenas um: o Marrano. Mas as suas partes são Aristocráticas; têm uma hierarquia. Comecemos pelo Rei. Devo confessar com Alegria, que soube serem os Lagartos. Lagartinhos se o Marrano é mais pequeno. Mas, do topo do arcaboiço, junto às costelas lá estão os Lagartos: o Rei dos sabores. Para lhe fazer corte há Duques, Marqueses, Condes, Viscondes e até Barões. Com coroa Ducal aparece e faz vénia o Lombo. De seguida as Costeletas e o Entrecosto vêm a par. Logo acompanhadas pelas Febras. Assim encerram o primeiro Estado: os Nobres. Com deferência de Eminência e Excelência Reverendíssima e Monsenhor vêm as Costelas, o Pernil. Para o 3º Estado, o Povo, a Entremeada, a Cabeça, o Focinho, as Miudezas, os Chispes.

E assim ficam dadas as representações na Corte Terrestre. Mas, o Marrano, tem os sabores do Paraíso: primeiro os que têm como incenso o fumo da lareira: o Presunto, o Chouriço, as Chouriças, as Morcelas, as Farinheiras, a Bucheira, o Bucho. Depois os que recebem o aconchego da panela de ferro devidamente aquecida pela labareda de madeira honrada: os chichorros do redanho, os chichorros das banhas e o Anjo dos Polinsaturados: o unto para vivificar tudo o que é manjar em todo o ano que ainda restar. Para a Arca vai em sal do Mar o que é preciso preservar. Para todo o Ano, lá fica, na Salgadeira, para dar energia redobrada quando os trabalhos da Primavera e do Verão chegarem.

Para a Corte Terrestre, no dia da Matança, a Burgigada, com sangue, pão e azeite a fervilhar com alho. Esta Miga é a prova Real da Existência de Deus. Claro que de perder a cabeça são o guisado de batatas com ossos da cabeça e para dar mais memória, junta-se a mioleira. Já mais terrenos são as batatas de espinhela para onde vai o osso que os mais dados à anatomia chamam de esterno. O guisado de fígado com muita cebola, louro, alho, vinho ou no dizer de hoje: omega 3. Os Rins são assados e logo comidos pelos matanceiros. Que se reservam esse petisco.

Com tanta energia no dia da Matança lavam-se as tripas na água da Ribeira para a Divina Morcela. E lá vai para dentro pão, sangue, cominhos, gorduras, salsa, um fandango de aromas e sabores.

Quatro ou cinco dias após o óbito, a carne que esteve a marinar em pimento, vinho, sal, alho é provada na sertã. Se for aprovada pela Assembleia em que todos têm direito de veto, entra na tripa, emprestada, pelo vivo lá de casa: a da vaca. Ao mesmo tempo, cria-se a bucheira. À tripa delgada do Marrano dá-lhe vida carnes da cabeça, os bofes, o coração, o estomago, e de tempero o habitual, e o fumo que a tudo chegue.

E lá vem o Bucho. A bexiga dá-lhe a forma, as cartilagens, as pontas das costelas, o rabo partido aos bocados acrescentados com os coiratos com o mesmo tempero e o fumo que todos os enchidos partilham.

Tanto sabor, tantos aromas exigem algum descanso. Agora, semanas mais tarde, a vaca empresta a tripa. Enche-se com pão ensopado na água onde foram cozidos os ossos da suã a que se junta a carne estrugida impregnada de pimento, de cebola, de alho, de louro, de salsa, tirados de um barranhão. E lá ficam por baixo do caniço das castanhas piladas, a receber o sagrado fumo da lareira de todos os dias acendida no lar.

As Cortes estão prestes a encerrar os seus trabalhos de Domingo Magro à Terça-feira de Entrudo. E os Céus decretam, e não vos esqueçais: No Domingo Magro come-se o rabo, e no dia de Entrudo come-se tudo.

O resto do Ano acho que é com o FMI, ou a Troika.