O Super Medíocre Juiz - II

O magistrado deve partir de uma descrição global para posteriormente passar para perguntas específicas de forma a clarificar vértices provavelmente dúbios ou incompletos.

Quanto mais comovente e enérgico for o acontecimento, menos a testemunha se rememorará dos pormenores, uma vez que a matéria que se contempla é a “actuação” de instrumentos psíquicos inconscientes do indivíduo que determinam o olvido de factos traumáticos, angustiantes e agónicos. Transparentar que também se verifica um decrescimento no escalão de reminiscência à medida que o tempo vai passando.
Podem existir elementos ou ambientes relevantes para o processo que são desaproveitados ou ignorados, pois os mesmos não são considerados pertinentes para o magistrado segundo o seu processo subjectivo e imaginário de focalização ou de concentração do entendimento e do raciocínio. Será que o trabalho de optação do conteúdo sobre o qual será decretado o julgamento está subordinado à compreensão do magistrado? Será que aquilo que vai ser analisado não constitui a matéria que ingressou na consciência do juiz? Será que o sentenciador não representa, em certa medida, o poder do Estado? Será que o mesmo ao circunscrever os destinos dos indivíduos, não promove no pensamento popular sentimentos de consideração, admiração e temor?
Contemporaneamente, o Poder Judiciário metamorfoseou-se num género de tábua de salvação para as mais diferenciadas imperfeições que torturam o espírito humano. O magistrado deve perfilhar a ideia de que agasalha um conjunto de limites e de balizamentos, tendo o direito de perpetrar equívocos, situação que jamais se mistura ou se assemelha com uma atitude de deselegância ou de negligência. Será que a representação social da “fisionomia” do magistrado não deve ser interpretada pelo sentenciador com a finalidade de mutilar o desequilíbrio emocional próprio, das partes e das testemunhas? Será que não é importante que o juiz perceba que existem inúmeros indivíduos que necessitam de se sentir amparados na superfície de audiências? Será que o magistrado não representa o cidadão preparado para dissolver os antagonismos? Será que não existem sempre volumosas expectativas em relação às suas deliberações? Será que o juiz não deve edificar, no espírito dos litigantes, o sentimento de autêntica conveniência na resolução equitativa da discórdia e do conflito?
Ao longo dos tempos, uma das principais batalhas que os indivíduos têm “degustado” acaba por ser a da colação com os seus semelhantes. Na realidade, o empenho e o labor da humanidade nas suas configurações de planeamento e de estruturação política têm constituído a empreitada descompassada, inconclusa, desmesurada, e insubsistente de regulamentação dessa tendência, congénita ou cultural, para o conflito e para o antagonismo. Será que ao indivíduo não é imposta uma normatividade enquadrante e uma espécie de lógica ajustada? Será que essas condições não fundam o princípio elementar da sociabilidade? Será que a inclinação do indivíduo não é, indeclinavelmente, para o desajustamento e anarquia?
Realçar que são esses desrespeitos e desencaixes que descerram ao homem inúmeros contextos e oportunidades de autodefinição. Constantemente os indivíduos são colocados perante actuações específicas, existindo perpetuamente uma dualidade de optações, ou seja: praticar o mal ou o bem; produzir ou não conceber; combater ou não pelejar; e apaziguar ou desapaziguar. A vida humana preceitua-se pela imprevisibilidade ou pela previsibilidade nunca integralmente fechada. Incutiram-nos ideias familiares do bem e do mal, bem como planos de sociabilidade, de colectividade, de sociedade e de utopia. Será que a utopia não pode ser interpretada como algo de árdua conquista, mas nunca de impossível conquista?
Para fazer face ao desapreço que o cidadão tributa à lei, atreve-se a concreção humana da mesma, centralizando num singular mecanismo ou aparelho a responsabilidade e o comprometimento da sua implementação e disseminação. O júri, o magistrado e o executor mesclam-se e confundem-se, num único semblante, no “ritual” ou acto de punição do crime. Será que sentenciar e castigar não constituem condições que convergem numa única “criatura”? Será que não constitui uma configuração fundamental excluir da mesma todos os delineamentos emocionais ou arbitrários? Será que não é somente perfilhando esse encadeamento que desabrocham as circunstâncias para sentenciar de modo equitativo?
É essencial que o juiz tenha bem presente que a prova é produzida não só para a organização e formação do seu convencimento, como também para os restantes elementos sentenciadores, que poderão avaliar os autos do processo, motivo pelo qual a matrícula ou a inscrição da prova atinge peculiar pertinência. O juiz deve aperfeiçoar a qualidade de saber ouvir, ou seja com interesse, calma, preparação, ponderação, atenção e discernimento, e nunca provocando embargamentos nas partes envolvidas. Será que para os inquiridos não é difícil a comunicação, em função de alguns parâmetros que o juiz desperta no seu próprio espírito?
No meio daquele aglomerado de papéis encapotam-se expectativas, desejos e pretensões, que jamais podem ser negligenciados pela premência e pela tensão. O magistrado deve partir de uma descrição global para posteriormente passar para perguntas específicas de forma a clarificar vértices provavelmente dúbios ou incompletos. Portanto, cabe ao mesmo enunciar as perguntas específicas depois de a testemunha ter concluído a sua narrativa global sobre um determinado contexto. A inquirição de testemunhas detém uma importância colossal para a descoberta da verdade, pelo que o magistrado não deve descorar a responsabilidade que possui ao interceder na obtenção dessa prova. Logo, podemos seguramente asseverar que a actividade intelectual se sintetiza em dois métodos diferenciados de abordagem dos acontecimentos externos que amantelam o juiz, um de investigação e análise, outro de assimilação e resumo. A análise acaba por constituir a tarefa que separa e insula o conjunto de elementos oriundos de acontecimentos novos e obviamente que se harmoniza de modo a suplementar todo um aglomerado de ideias, movimentos, inclinações e automatismos já enraizados. A síntese é, numa perspectiva epidérmica, a descomplicação ou simplificação pela junção coerente das correspondências entre os elementos, de forma a incorporá-los e a compreendê-los.
No âmago do exercício intelectual, o juiz organiza e coordena de modo congruente as ideias, as imagens, as reminiscências, os conhecimentos e as percepções. A medula desta estruturação é influenciada pelo mecanismo sensorial e cerebral de cada indivíduo. Realçar que quando os índices de influência são desmesurados, existe a clara e espontânea propensão para desaguarmos no controverso e sinuoso mar do subjectivismo. O subjectivismo é acalentado pela auto-observação, ou seja a inclinação inconsciente, natural e voluntária que possuímos, ao efectuar um determinado julgamento, de conceber uma comparação entre o nosso pensamento e aquele que conduziu a actuação de terceiros. Será que a introspecção não é importante na perspectiva da humanização da deliberação? Será que noutro prisma esse recurso não é incompleto e lacunar pelo facto de se estabelecer uma comparação entre elementos heterogéneos?
O juiz instintivo, como é o caso do Super Medíocre Juiz, Carlos Alexandre, deixa-se transportar por simples e infundadas impressões, chegando mesmo a julgar um indivíduo antes de analisar rigorosamente as provas obtidas contra o mesmo. O instinto constitui uma condição sombria, influente e poderosa de qualquer julgamento. Quando exageramos na inalterabilidade psicológica ao ponto de abraçarmos uma ideia porque a mesma constitui a nossa ideia, desponta a obstinação. Será que a obstinação não é uma verdade “despótica”, que agasalha a vocação de manter-se em relutância com a verdade, simplesmente porque a mesma está em desarmonia com a nossa apreciação? Será que o subjectivismo e a instintividade não edificam e não promovem alguns contextos de obstinação?
A mediatização da justiça acabou por oferecer à sociedade o conhecimento de inúmeras configurações de vivência desta, bem como o modo como tais vivências são examinadas, abordadas e executadas pela própria Justiça. Será que não é ao lado da ferocidade noticiosa, formada por verdadeiros conglobados supostamente informativos, que o aparelho judicial vai ser convocado a investigar e a deliberar? Será que uma condenação penal não deve exigir o apuramento dos factos com rigor? Será que a sentença não deve ser proferida com base num conjunto de provas? Será que essas provas não devem estruturar, endurecer e solidificar a convicção do magistrado? Será que não é crescente a consciência social de que o Direito, assim como as outras ciências, não são, nem tão pouco podem ser, superfícies separadas e estagnadas em relação ao saber e ao conhecimento? Será que não é fundamental acautelar a máxima de que é mil vezes melhor inocentar um culpado do que sentenciar um inocente? Será que a junção entre o Direito e as outras ciências não possibilitará a efectiva realização da Justiça e, obviamente, a descoberta da verdade material? Será que a prova não consiste na acção de apresentar a realidade de um facto, ou o produto da manifestação de que determinado facto é autêntico? Será que o facto jurídico não pode ser definido como o acontecimento, conjecturado em normas e regulamentações jurídicas, pelo qual germinam, se transformam, permanecem e se dissolvem encadeamentos jurídicos?
Um julgamento penal é perpetuamente um espectáculo bastante emotivo. Há uma rígida e imaleável dureza que brota das paredes, por vezes totalmente despidas, outras vezes ornamentadas com símbolos referentes à força da lei. Aquela frígida “pompa” de togas e de uniformes, que insere temor até aos mais inocentes, acaba por encher de pavor o infortunado, o inocente ou o implicado, que tem de replicar em Juízo. Se a prova é considerada o fundamento e o motor para a convicção e para a determinação, talvez fosse anormal que o seu receptor não pudesse “desafogadamente” estudá-la, segundo a sua perspicácia, impressionabilidade e experiência de vida.
A transferência da experiência alcançada, de geração em geração, constitui uma espécie de segundo instrumento de hereditariedade, ou seja a hereditariedade da experiência que ultrapassa o processo genético de hereditariedade universal da substância viva. O homem é um ser ímpar, representante de um novo período de desenvolvimento, o desenvolvimento cultural. A cultura é uma característica ou propriedade exclusiva do homem e a sua transferência e obtenção acontecem através do ensino, da imitação e da optação criteriosa e consciente. As particularidades culturais conquistadas, ao inverso das características somáticas adquiridas, são susceptíveis de ser transmitidas a um número ilimitado de indivíduos, sendo mais simples de transformar que as provenientes da hereditariedade biológica.
O homem alcança, de modo gradual e através de contextos de socialização e de aculturação, os automatismos, as competências, os conhecimentos, as opiniões, as conjunções de confiança e as crenças que o incorporam na própria sociedade. Na realidade, todos os indivíduos “desabrocham” num conjunto de práticas, de rotinas de certezas definidas, que os adapta paulatinamente, por actuação integral do meio envolvente e não unicamente por acção dos pais e dos educadores. Será que no momento em que estamos aptos para raciocinar e ponderar não somos já um produto da cultura que desfila no meio ambiente envolvente? Será que a esmagadora maioria dos protestos, dos “clamores” e dos comportamentos que assumimos não são o resultado de alguns condicionamentos culturais? Será que em inúmeras conjunções, os lineamentos de carácter, de origem e de essência cultural não possibilitam vaticinar, com algumas doses de certeza, a conduta individual nas disposições mais variegadas?
A liberdade individual, considerada uma das maiores conquistas da humanidade, agasalha o desfecho de não subsistirem ideais que não tenham sido submetidos a críticas, a análises e a julgamentos. Será que o homem é determinado pelo passado e pelo “sistema” dos impulsos? Será que o mesmo não pode edificar o seu futuro através do emprego das experiências e dos conhecimentos acumulados pela humanidade? Será que a cultura não oferece à humanidade, de modo “generoso”, essas experiências e conhecimentos?


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