Todas as crianças são “sujeitos” de direitos, logo deve ser garantido o seu aperfeiçoamento global através da concretização dos mesmos. Todavia, um número considerável de crianças está exposto a conjunturas de risco que arrancam e aniquilam a hipótese de as mesmas desfrutarem dos direitos que estão consagrados na Convenção dos Direitos da Criança. Será que não é fundamental analisar e compreender a extensão da aplicação do princípio que menciona o superior interesse da criança em situações concretas de perigo?
O vocábulo superior no princípio designado por superior interesse da criança deverá ser interpretado como uma espécie de degrau de superioridade que deve: apadrinhar e beneficiar a sua liberdade de expressão; incrementar e favorecer a sua autonomia nos processos que lhe estão vinculados; identificar e perfilhar a criança como sendo uma pessoa que agasalha direitos próprios que necessitam de vigilância e protecção no seu dia-a-dia; colocar à frente de toda e qualquer deliberação os interesses da criança, facultando, dessa forma, maiores índices de crescimento, conforto e tranquilidade; facilitar a participação da criança nas decisões; e garantir em todos os cabimentos a efectivação de todos os seus direitos.
Podemos considerar Portugal como um País pioneiro na elaboração e apresentação de legislação para a população infantil. Realçar que a primeira ferramenta legal, datada de 27 de Maio de 1911, desponta com a publicação da Lei de Protecção à Infância. No espaço de vigência desta lei as resoluções respeitantes às crianças obedeciam unicamente ao Juiz, levando a que os interesses da criança ficassem revogados pelo poder ilimitado presente nesse regime jurídico. Neste período, a protecção sobrepõe-se claramente à participação, uma vez que desfilava a ideia de que as crianças eram inábeis para actuar com independência e maturidade. Às crianças era recusado o estatuto de actores sociais, bem como o direito de partilhar a decisão sobre as suas próprias matérias e vidas.
Com as metamorfoses que sucederam na textura social e com as reivindicações sentidas pelos Estados a partir da promulgação dos direitos da criança na Convenção, o regime jurídico português, definido pela Organização Tutelar de Menores (OTM) de 1978, foi forçado a implementar novas disposições e directrizes que estivessem em consonância não só com os interesses da criança, como também com a sua condição de sujeito autónomo e tutelar de direitos. Será que as crianças e os jovens que se encontram em disposição de perigo não devem constituir os elementos nucleares da intervenção legitimada pelo Estado? Será que a constatação de concretos índices de insuficiência, em matéria de segurança, de saúde, de educação e de conforto, em que algumas crianças se encontram não pode ser antecipada, de modo a “socorrer” antes de cair no abismo?
O interesse jurídico na promoção dos direitos e na protecção das crianças e dos jovens deve estar sempre na ordem do dia. Torna-se essencial evitar que conjunções de risco se metamorfoseiem em conjunções de perigo. Na realidade, com a ausência de respostas e de soluções não existe restruturação legislativa que reaja às voltagens cada vez mais densas das situações de perigo em que se encontram as crianças e as respectivas famílias na sociedade portuguesa. Mesmo com a presença de um fascículo repleto de diplomas, diagramas e directrizes, também é necessário garantir a sua aplicação através de um conjunto de políticas e estratégias específicas para a população infantil.
As situações de perigo são procedentes de comportamentos ou omissões que advêm do desmazelo e da negligência por parte dos responsáveis pela criança ou jovem. Estas acções intervêm de forma desfavorável na qualidade de vida e crescimento completo da criança ou do jovem, podendo amputar a materialização dos seus direitos. O abandono escolar; os maus tratos físicos ou psíquicos; o trabalho infantil; a profunda insegurança; os abusos sexuais; o desinteresse por todos os contextos sociais; o desenvolvimento de condutas arriscadas e indesejáveis para a sua probidade; e os comportamentos que influenciam visceralmente a sua “serenidade” física e psíquica constituem telas de perigo que colocam em dúvida todas as etapas de desenvolvimento da criança ou do jovem. Será que não é relevante classificar e agrupar os princípios da intervenção? Será que a finalidade não reside no superior interesse da criança? Será que no conjunto das medidas não devemos enquadrar a simetria e a intimidade? Será que a conjuntura não exige uma intervenção prematura ou precoce? Será que a manutenção das crianças no seio familiar não deve constituir uma prioridade? Será que os direitos processuais não embrulham a obrigatoriedade da informação, da auscultação e da participação?
Os cânones norteadores de intervenção devem ter como propósito a garantia dos direitos da criança ou do jovem, desaguando obviamente no superior interesse da criança. O princípio da intervenção precoce está relacionado com o momento da intervenção. A lei comunica que a intervenção é executada a partir da sinalização de uma situação de perigo, o que destapa um paradoxo com o vocábulo precoce, uma vez que a situação de perigo embrulha acontecimentos nocivos que já estão a suceder. Nesta perspectiva, os episódios já estão a ocorrer e, concomitantemente, os direitos da criança já estão a ser vilipendiados. Será que este problema não pode ser reduzido pela compreensão de que as conjunturas de perigo podem ser diagnosticadas sem a necessidade de comprovação dos malefícios reais para a criança? Será que a actuação não pode ser efectuada antes que o desenvolvimento da criança ou do jovem seja afectado?
As políticas de promoção e protecção das crianças e jovens foram planeadas tendo por base o envolvimento da família, enquanto tentáculo natural capaz de se revalorizar, e da comunidade que deve descobrir na sua medula as energias e os dinamismos indispensáveis à protecção das suas crianças e jovens, inventariando-se, de modo comprometido, dedicado e integrado, na concretização, eficácia e eficiência das medidas. Para que esta conjuntura se concretize torna-se imprescindível que a sociedade e o Estado coloquem à disposição os recursos técnicos e financeiros capazes de dar resposta às necessidades das famílias e da comunidade, transfigurando-as num elemento fulcral no que respeita à promoção e efectivação dos direitos das crianças e dos jovens. Existem instituições que não estão estruturadas para dar resposta a alguns dos novos contextos, tanto por insuficiência de vinculação com outras entidades, como por inexistência de mecanismos adequados. Será que o superior interesse da criança não deve integrar os direitos civis, políticos, sociais, económicos e culturais? Será que as políticas sociais não devem ser definidas e substantificadas a partir de directrizes internacionais e da própria legislação existente no País?
As políticas sociais devem ir ao encontro dos autênticos obstáculos com que as crianças e os jovens se deparam. Somente é exequível o escrupuloso raciocínio e entendimento das suas reais necessidades, bem como a promoção e defesa efectiva dos seus direitos se as teias democráticas de poder e a configuração democrática das estruturas organizacionais dos serviços públicos existentes na sociedade civil estiverem suficientemente desenvolvidas, nomeadamente na comunidade local?
Este arquétipo não dispensa o conhecimento crítico dos agentes na circunferência social, bem como a participação activa dos mesmos na edificação de políticas sociais e a classificação dos serviços orientados à população infantil. As sociedades hodiernas aquartelam a incumbência de asseverar as cláusulas e os contextos imprescindíveis à efectivação dos direitos da criança. O Estado, os cidadãos, as autoridades, os pais e as instituições de temperamento público ou privado são responsáveis pela protecção e pela estabilização dos direitos da criança, ou seja têm uma palavra muito importante a proferir em relação ao seu desenvolvimento, conforto, crescimento e qualidade de vida.
Podemos certamente referir que o conceito de pobreza está interligado à dificuldade de ingresso no quadro dos recursos indispensáveis à sobrevivência ou à continuidade humana. A pobreza é uma condição ou circunstância humana, assinalada pela carência pertinaz ou crónica de recursos, habilidades, optações, e índices de segurança e poder fundamentais para se ter acesso a um modelo adequado de vida e a outros direitos civis, sociais, culturais, económicos e políticos. Será que este fenómeno não limita e abrevia a condição do indivíduo como sujeito de direitos? Será que o mesmo não transporta o sujeito para a periferia da sociedade?
As crianças e os jovens são aqueles que mais padecem com as múltiplas texturas e exteriorizações de pobreza e que estão, de modo mais eloquente, com o futuro “laconizado” e condicionado. Infelizmente as crianças que convivem com a pobreza acabam por não desfrutar dos direitos básicos como a saúde, educação, alimentação e domicílio. Será que a pobreza infantil não é sinónimo de inexistência ou de carência de direitos? Será que actuação das entidades responsáveis não é fundamental no processo de promoção dos direitos e protecção da criança? Será que essa actuação, em determinadas ocasiões, não é imperfeita, mal delineada e vagarosa?
Em determinadas situações a premência da intervenção pode acarretar deliberações e soluções imediatas, contudo estas não se devem metamorfosear em derradeiras sem que tenham sido observados e estudados os factos, assim como concebidos os diagnósticos que conglomerem todas as características e aspectos da vida da criança, da sua família e do seu contexto social. É preocupante saber que a esmagadora maioria dos casos sinalizados que envolvem crianças ou jovens já está mergulhada em cenários de perigo. Torna-se imprescindível que as entidades, designadamente a escola, as instituições privadas de solidariedade social, o centro de saúde e a segurança social, realizem com maior presteza e desembaraço o reconhecimento dos problemas e, dessa forma, procurar, pelo menos, que as situações de perigo sejam anunciadas numa etapa inicial. Somente assim se podem evitar as sequelas para o futuro provocadas pelo sofrimento, mágoa, melancolia e tristeza.
Apesar de existir um esforço para que na maioria dos casos as crianças permaneçam ao lado dos pais ou família mais próxima, a verdade demonstra que é bastante complicado garantir estes itinerários enquanto não forem superadas as dificuldades de natureza estrutural que estão na origem dos problemas.
O analfabetismo; o desemprego; os parcos rendimentos; a baixa escolaridade; a falta de objectivos; os constantes problemas de saúde; a fragilidade psicológica; a dependência em relação ao álcool e às drogas; as experiências pouco harmoniosas de vida; a ausência de motivação; a marginalização; a dificuldade de acesso aos bens elementares; e as condições habitacionais precárias constituem factores que convivem com inúmeros indivíduos e que desafortunadamente contribuem para a não assunção das suas obrigações perante a criança, a família e a sociedade. Será que as crianças não são as principais vítimas do sistema? Será que esse sistema não deveria ter como precedência a defesa e a salvaguarda das crianças?
Referir também que existe uma identificação e conexão “espontânea” dos planos de intervenção com as anuências e os acordos de promoção e protecção. Esta condição transporta a impossibilidade de capitalizar, num formato escrito e organizado, a maneira de articular as entidades e os serviços envolvidos, com a finalidade de desenvolver um trabalho conjunto que objective a concretização dos direitos das crianças e dos jovens.
A diminuição do investimento no que toca às políticas sociais vai deteriorar os contextos de vida de boa parte da população, com as crianças a serem uma vez mais as principais vítimas. Nos casos em que é necessário ouvir as crianças, o Estado deve proporcionar condições e exigir melhores índices de preparação aos tribunais. Sabemos que a autorização judicial depende da idade e da maturidade da criança, porém o tribunal nunca poderá saber se a criança tem muita ou pouca maturidade se, e antes de determinar a sua audição, não a conhecer.
É irrefutável que existem desvantagens no facto de uma criança ser ouvida sobre processos que lhe dizem respeito, contudo também será indesmentível que a criança deve, de alguma forma, decidir sobre o seu futuro. Felizmente que a ordem jurídica hospeda um novo padrão, que concebe as crianças como sujeitos de direitos, e que ofusca e permuta o padrão tradicional da criança como objecto dos direitos dos adultos. Os tribunais estão obrigados a acomodar-se a este novo arquétipo, inaugurando uma contemplação nova para a criança, para a sua capacidade e para as suas necessidades especiais, sendo este o singular caminho que vai desembocar no superior interesse da mesma. Uma criança é uma pessoa com a mesma dignidade e os mesmos direitos que os adultos, a quem o Estado, através das suas instituições, não tem o direito de decretar um percurso inverso à sua própria vontade.
Por decisão pessoal, o autor do texto não escreve segundo o novo Acordo Ortográfico.