A cultura cresce e desenvolve-se caminhando de achado em achado, autorizando existências e vivências assinaladas por grandiosas luzes e estigmatizadas por sombras alarmantes, e amplificando os confins da experiência humana. Apesar de o homem contemporâneo não carecer de nenhum estímulo especial para conservar o seu orgulho adejado em alturas “siderais”, a ciência hodierna não pára de abastecê-lo com “originalidades” que acabam por amamentar, de forma ininterrupta, a sua vaidade falaciosa de fidalgo ubíquo.
A biografia do termo clonagem é especialmente aliciante do ponto de vista linguístico, uma vez que o mesmo germinou no cabimento científico, foi posteriormente apropriado pela ficção científica e mais tarde retornou à própria ciência. Podemos afirmar, e de uma forma epidérmica, que a clonagem consiste na multiplicação assexuada de indivíduos geneticamente iguais. Todavia, o vocábulo clonagem tem alcançado elevadas doses de significação e importância. Este facto está profundamente associado ao intrincado método laboratorial de consecução de indivíduos geneticamente iguais, através de práticas e técnicas embebidas em “manuseamento” de células e de tecidos.
A clonagem tem lugar no reino vegetal há bastante tempo, particularmente na floricultura, na fruticultura, e no recobramento e reintegração de algumas espécies vegetais que se encontram em vias de extinção. Porém, somente a partir do nascimento da ovelha Dolly é que a porfia da clonagem “arrebatou” o imaginário social, escancarando as portas para a clonagem dos seres humanos. Contudo, apesar do avanço célere das técnicas, ainda há uma panóplia de obstáculos e retrocessos para que a ciência consiga obter um clone bem-sucedido. Alguns desses estorvos são: os fracassos em algumas experiências com outros mamíferos que desaguaram em mortes e malformações; e o envelhecimento e adoecimento precoce.
Os argumentos que viram as costas à clonagem humana incidem em três pontos fundamentais: o risco psicológico; o risco físico; e o risco social. No risco psicológico podemos incluir a possibilidade de amortecimento do raciocínio de individualidade ou identidade singular, assim como a violação do direito de “estruturação” da própria vida. Quanto ao risco físico podemos afirmar que para “fabricar” a ovelha Dolly foram necessárias inúmeras tentativas que têm uma percentagem de sucesso muitíssimo reduzida. Por último, os riscos sociais estão intimamente ligados às consequências sobre o equilíbrio familiar, bem como à diminuição do respeito pela pessoa humana, podendo emergir traços de discriminação e desarrumação em relação a quem é o pai, a mãe, os avós ou os irmãos. Por sua vez, as armas dos defensores da clonagem assentam em dois vértices fundamentais: uma boa resposta para a infertilidade; e o combate constante às doenças genéticas.
A globalização e o neoliberalismo, amarrados às metamorfoses económicas e ao progresso técnico e científico, caminham para um método de propagação e de uniformização política, económica e cultural. Este procedimento é a enunciação do famoso individualismo, “privilégio” do nosso tempo. Perante esta “consistência”, urge a necessidade de revalorização e reabilitação do sentido ético dos humanos e a consequente deferência em relação às diversidades culturais como elementos essenciais de um paradigma de urbanidade alicerçado na multiplicidade, liberdade, democracia, amizade e conciliação.
No meu ponto de vista, os argumentos “obséquios” da clonagem assumem a consciência de que o sistema de saúde é um comércio que deve responder aos desejos e interesses individuais. Será que os defensores da clonagem não aconchegam um julgamento de comunidade ínfimo, no qual as obrigações individuais capitais são as suas próprias conveniências? Na realidade, todos seríamos obrigados a adoptar o método “clonagem humana”, pois, desse modo, conseguiríamos livrar os nossos descendentes dos “pérfidos” genes e “fabricaríamos” crianças com faculdades e habilidades especiais, uma vez que as mesmas iriam possuir os melhores genes e as melhores “conjecturas” de vida saudável. Jamais nos podemos olvidar que algumas doenças têm a sua origem em comportamentos maléficos de vida, como são disso exemplos a deficiente alimentação e os costumes perniciosos. Não será certamente a clonagem que irá cicatrizar as imperfeições da alma e as rotinas de vida desacertada. No seio desta conjuntura, figuram os geneticistas com os seus genes e cromossomas que asseguram prodígios e amedrontam horrores. É com esta espécie de prognosticar “milagres” e intimidar calamidades que se vai tentando aclarar e impulsionar a vigilância da ética, “instância” esta que indubitavelmente se preocupa, de um modo bastante profundo, com a dignidade dos seres humanos.
Apesar de não concordar com a clonagem humana, tenho a firme convicção que os progressos tecnológicos irão colaborar na edificação de itinerários cada vez mais cristalinos para que a mesma ultrapasse o domínio da ficção científica e se instale, de forma perpétua, no império das possibilidades exequíveis. Contudo, nessa altura, o cintilante desafio nessa área será o de celebrar um posicionamento moral coeso e racional, bem como o de elaborar e executar uma legislação que esteja realmente ao “serviço” da respeitabilidade humana, que contemple a suma importância do bem-estar social e albergue uma sensibilidade excepcional no que diz respeito aos direitos elementares dos elementos mais vulneráveis da comunidade.
Na Internet desfilam diversos “ficheiros” que estão imersos em autênticas e pardacentas telas de mentira e embustice. Essas campanhas publicitárias não dilucidam, por exemplo, como é que se iriam desobstruir os caminhos da gestação dentro do ventre materno. Será que os respectivos serviços que essas campanhas apregoam proporcionam aos seus clientes o feto clonado e a mãe adoptiva? Qual será a idade ideal da criança para ser entregue aos “requisitantes”? Quais são os efectivos direitos dos consumidores? Será que este tipo de situações não constitui um verdadeiro descalabro para a sociedade?
O exercício da clonagem, numa perspectiva de investigação biomédica, poderia ser aconselhada, e até perfilhada, tendo em conta os cânones da utilidade e do companheirismo. Mas, os discernimentos e juízos éticos sobre o emprego da clonagem acabam por estar subordinados à natureza e índole que forem adjudicadas ao produto da transladação nuclear corporal.
A clonagem humana por transferência nuclear “física”, com propósito reprodutivo, não está cientificamente experimentada, subsistindo inúmeras dúvidas e perplexidades no que respeita à sua viabilidade. A tecnologia e a ciência podem ser consideradas como “propriedades” para humanizar, harmonizar e aprimorar o planeta, como também podem constituir autênticas ciladas para a destruição. A observação crítica e desperta da ética é uma das configurações de resguardo que os indivíduos possuem para alcançar um vindouro completamente humanizado.
É certamente salutar que os cidadãos se disponibilizem a meditar no significado e na importância da humanidade, e, simultaneamente, descubram como pode ser preocupante e maravilhoso o “forasteiro” universo da biologia celular. Será que não é determinante para a sociedade que o vocábulo célula entre no léxico vulgar da mesma?
Por decisão pessoal, o autor do texto não escreve segundo o novo Acordo Ortográfico.