A História, nas Terras da Estrela

A Serra da estrela foi chamada, na idade média, Hermeno, ermeo ou ermio. Ora o nome mons Herminius surge em dois autores clássicos que narraram sucessos da campanha de Júlio César em 61-60 AC e de Quinto Cássio Longino em 48 AC.

Se é óbvio que o nome medieval deriva do nome antigo mons Herminius, é menos evidente que, na época Romana, o nome Herminius se aplicasse apenas à Serra da Estrela: talvez designasse um conjunto de montanhas que hoje têm cada uma, o seu nome próprio (a da Estrela, a da Gardunha, a da Malcata e talvez ainda a da Marofa e outras mais, mesmo em Espanha).

Seja como for, dificilmente poderemos aceitar que os Lusitanos viviam na serra da Estrela. Sustentada desde o sec. XVI, esta ideia é ainda mais popular, mesmo que historiadores e arqueólogos, hoje, a não subscrevam.

Foi Martins Sarmento o primeiro que duvidou da Serra como solar dos Lusitanos. Em 1881, a Sociedade de Geografia de Lisboa organizou uma «expedição científica» à Serra da Estrela. Esta era então bem conhecida de seus naturais – sobretudo pastores que por ela guiavam seus rebanhos de ovelhas e cabras. Mas o mundo científico não conhecia a serra. Mesmo quem vivia em cidades como Viseu, Guarda ou Castelo Branco, a Serra da Estrela era apenas um horizonte, branco no Inverno, castanho no estio, nevoento ou brumoso em muitos tempos do ano. Só os da Covilhã, industriosos na fiação e tecelagem da lã, a conheciam melhor. A Sociedade de Geografia de Lisboa resolveu, pois, organizar uma expedição para estudar uma serra quase desconhecida ainda na década de 1880. Nessa expedição foram integrados especialistas de Geografia, Geologia, Hidrologia Minero-Medicinal, Agronomia, Zootecnia, Antropologia, Etnografia, etc. Desse grupo fez parte o mais notável arqueólogo de então, Martins Sarmento.

No final da visita, Martins Sarmento escreveu no seu relatório: «as preocupações literárias que faziam crer o mais inacessível dos Hermínios habitado pelos nossos antepassados, os Lusitanos, têm de desvanecer – se perante a realidade dos factos. É possível, é provável, que em ocasiões de grandes perigos, aquele labirinto de precipícios acenasse com um refúgio seguro ás populações dos arredores, que lhe conhecessem os escaminhos; mas este era então um esconderijo, um asilo temporário, que não podia guardar-nos vestígios apreciáveis dos seus fugitivos ocupantes.»

Com efeito, no interior da Serra não há castros: só se encontram nas vertentes voltadas à Beira Central, à Bacia de Celorico (e Fornos de Algodres), à Guarda ou à Cova da Beira – isto é, na periferia da serra. É certo que nas Fragas do Avarento e no Curral dos Martins, bem no coração da Será, foram achados braceletes de ouro da Idade do Ferro (que, infelizmente, levaram sumiço). Em tempos pré-romanos, porém, as jóias eram por vezes oferecidas aos deuses em lugares onde se supunha que estes residiam, longe dos sítios onde os humanos habitavam. Os altos da serra, donde vinham os raios e trovões que por ela abaixo se despenhavam, eram dos deuses.

Roteiro Arqueológico da Serra da Estrela e do Planalto Beirão - Anta monumental da Cunha Baixa. LAC

Roteiro Arqueológico da Serra da Estrela e do Planalto Beirão
Anta monumental da Cunha Baixa. LAC

Ficaram os Lusitanos famosos, na antiguidade, pela valentia com que sustentaram, durante décadas, uma guerra indómita contra os Romanos. Muito se tem escrito sobre as razões da resistência. Pretendem alguns (nisso seguindo os autores gregos e latinos que nos deixaram relatos da história) que os Lusitanos fizeram a guerra porque, vivendo em terras pobres, tinham necessidade de saquear para sobreviver. Mas as terras onde viviam não eram, afinal, tão pobres quanto diziam os historiadores antigos: davam farto pasto às ovelhas, tinham caça, tinham fruta…

Povos antigos não faziam a guerra necessariamente por razões económicas ou para estenderem os seus domínios. Tinham outro pensamento, outros ideais – e entre estes contava-se o da valentia, o da heroicidade.Os Lusitanos já faziam a guerra antes de se terem confrontado com os Romanos. Talvez então não matassem, mas apenas roubasse – e mesmo assim, não por necessidade. Não seria a guerra, para os Lusitanos, um jogo no qual se procurava exercitar ou confirmar a valentia? No bando de fortes gritos com que atacavam aldeias iria o prazer de amedrontar. Tomada a aldeia de assalto, ficariam suspensas as mortes e violências. Com a rendição se satisfariam porque se rende e pede tréguas proclama o poder de quem os vence. No medo que liam nos olhos dos outros entendiam o que, de si mesmo já sabendo, queriam todavia confirmado: a sua valentia. O ser que cada um pretende ser não sendo dado (não se sendo valente como se é loiro ou ruivo), o ser se conquista por atos de bravura praticados. A guerra seria a ação na qual se experimentava a valentia e da qual esta sairia confirmada pelo olhar de medo dos outros e pela piedade que estes pediam.

O mais famoso chefe dos Lusitano foi Viriato. Durante anos sustentou a guerra contra os romanos, com tantos desastres para estes que, em certo momento, acabaram por reconhecê-lo como rex, rei. Mas logo depois, quebrando o tratado, armaram cavilosamente seu assassinato. A resistência quebrada foi fogueira mal extinta, pois haveria de reacender-se em ocasiões, ainda por muitas décadas. Mas era causa perdida. Se, antes dos Romanos, a Serra da Estrela era quase deserta de gente (exceto na sua periferia, como dissemos), continuou a sê-lo por todo o tempo em que os Romanos dominaram a Lusitânia. Mas estes traçaram por ela uma longa rota que ligava Egitânia (Idanha-a-Velha) a Viseu e era o mais curto caminho entre duas das maiores cidades de então: Augusta Eremida (Mérida) e Bracara (Braga). De Centum Celas (Belmonte), a estrada ia a Valhelhas, subia por Famalicão à Senhora das Barrelas e dirigia-se a Videmonte e Folgosinho. Nas imediações desta aldeia conserva-se um belo trecho de via pavimentada, a que a população local chamava de Calçadas dos Galhardos.Nascido na Serra, o Rio Zêzere ia irrigar um vale de clima ameno e terra fértil, que formigava de gente. Na encosta, acima de Orjais, um templo a Júpiter, do qual se conservam ruínas, era um mirante que dominava em redondo vasta terra. Era o mais alto e mais importante monumento romano da serra da Estrela.

Do lado ocidental da serra, voltado à Beira Central, talvez houvesse em Seia povoado romano de alguma dimensão. Mais alto ainda, o castro de S. Romão, que vinha desde os finais da idade do bronze, manteve-se habitado num testemunho de como, por muito que os Romanos tenham proibido ou inovado, não cortaram o fio, sempre contínuo, da história. Trouxeram nova língua, mas não condenaram a antiga lusitana, que continuo ainda por algum tempo a ser falada. Dela temos testemunho em inscrição rupestre do Cabeço das Fráguas. Consagrada a divindades indígenas, esta epígrafe (a par com muitas outras) prova também que os deuses dos antigos Lusitanos não sofreram, dos Romanos, a morte a que só o Cristianismo os condenou.

No sec. VI, eram ainda raras as paróquias. No paroquial dos Suevos, referem-se Subhermeno e Monecipio. Talvez a primeira ficasse em Seia; a segunda, dependente da Sé da Egitânia, havia de situar-se na vertente oriental da Serra – mas a sua localização exata é desconhecida…

Fonte: In Roteiro Serra da Estrela (LAC)