O projeto, organizado pelo Clube Escape Livre, da Guarda, em parceria com a Marinha do Tejo e a Toyota, procurou recriar aquele que teria sido o percurso com cerca de 400 anos do transporte de gelo (“neve”) da Serra da Estrela até Lisboa, durante os meses de maior calor, para assegurar gelados e água fresca à realeza.
Sem carroças de bois nem mulas, boa parte do percurso fez-se com ‘pickups’ todo-o-terreno, que receberam na quinta-feira de manhã, junto do Covão D’Ametade, na Serra da Estrela, “a neve”, que na verdade era gelo criado pela própria organização para o efeito, face à falta dele por esta altura no ponto mais alto de Portugal continental.
Depois de uma pequena encenação, as carrinhas seguiram caminho, passando pela Serra da Gardunha, a aldeia histórica de Castelo Novo, Constância e Almeirim, onde se juntou à expedição a ministra da Coesão Territorial, Ana Abrunhosa, que fez questão de ir ao volante de uma das carrinhas que transportava o gelo.
Já hoje, na Moita, um barco varino (embarcação antiga muito usada no Tejo para transporte de carga e que também foi utilizada para a neve) partiu com cerca de 100 quilos de gelo, tendo como destino o Cais das Colunas.
Apesar de algum receio da equipa, os blocos de gelo, acondicionados em serapilheira para se conservar (tal como acontecia há 400 anos) e armazenados em caixas de esferovite, lá aguentaram a viagem de mais de 24 horas sem se derreterem.
Depois de a comitiva ser recebida à chegada a Lisboa por atores vestidos à imagem do século XVIII, seguiu-se uma “degustação” do gelo no Martinho da Arcada.
“Está maravilhoso”, disse a ministra, enquanto provava o gelo acabado de picar naquele café bicentenário também associado a este percurso, já que quando nasceu era conhecido como “Casa da Neve”, por vender “neves” com sabores, e que no século XVIII envolveu-se numa contenda com outro histórico, o Marrare, que reclamava também um pedaço do gelo que chegava a Lisboa.
A contenda acabou por ser resolvida pelo próprio Marquês de Pombal, contou o físico e “pai” do primeiro satélite português Fernando Carvalho Rodrigues, que lançou o desafio ao Escape Livre para este percurso depois de ter descoberto um objeto que era usado para fazer uma espécie de gelado rudimentar.
Segundo o próprio e sustentado por documentos históricos consultados na Torre do tombo, desde o século XVII, ainda durante a dinastia filipina, seria assegurado o transporte de neve, com direito a nomeação de um neveiro-mor, responsável por uma empreitada que levaria centenas de quilos de neve para a capital.
Se ao princípio a neve ia apenas para a corte portuguesa, cedo se popularizou, estando até o hábito de “tomar neve” inscrito na literatura portuguesa, pela mão de Eça de Queirós.
Em 1877, na “Tragédia da Rua das Flores”, uma personagem diz: “É laranja e morango; delicioso, é da melhor neve que tenho tomado este ano”.
O percurso agora feito é um caminho “imaginado” daquilo que poderia ter sido trilhado pelas carroças, que eram trocadas por embarcações no Zêzere, caso estivesse navegável, e daí seguia-se rio abaixo até Lisboa, ou, não sendo tal possível, a expedição seguia até ao porto do Tejo mais próximo para continuar a viagem por água, explicou à agência Lusa o presidente do Escape Livre, Luís Celínio.
Ao contrário por exemplo da Serra da Lousã, na Serra da Estrela não são conhecidos poços específicos feitos para acondicionar a neve, acreditando-se que esta seria guardada quer no Covão D’Ametade quer em Valezim, no concelho de Seia, onde era compactada e transformada em grandes blocos de gelo em buracos e zonas sem acesso à luz do sol, podendo manter-se aí conservada durante os meses mais quentes do ano, aclarou o responsável por aquele clube que procura promover a região da Guarda através do automóvel.
Depois deste primeiro teste e apesar de ainda nada estar definido, Luís Celínio admitiu que esta recriação do transporte do gelo poderá transformar-se num produto turístico, por forma a assegurar “este passeio nos próximos anos para participantes de todo o país que queiram conhecer esta tradição secular”.
“Este percurso permite perceber melhor como é que no passado o gelo e a neve chegavam a Lisboa e iam para os hospitais e para os cafés e também para a corte. Se no passado o interior tinha recursos de enorme valor, este ato simbólico é também um testemunho do extraordinário valor que os recursos do interior têm e há que valorizá-los e há que olhar para eles com inovação”, afirmou à Lusa Ana Abrunhosa.
Para a ministra, o percurso “tem um imenso potencial” para poder ser transformado num produto turístico.
“Uma rota propicia um percurso com experiências diversificadas. Se aliado às experiências tivermos a nossa história para contar, é uma rota perfeita”, frisou, destacando ainda este percurso por unir a serra à capital, num caminho que poderá também ajudar a conhecer outros recursos como o vinho ou a gastronomia.