Com a disseminação da cultura fast food, há um género de abrandamento das aplicações culinárias regionais e uma aclimatação à cultura alimentar moderna.

A alimentação transporta e comunica os conspectos relacionados ao paladar e às dilecções, bem como as perguntas “integrais” e os factos sociais desde as suas raízes mais longínquas. A alimentação não só é uma conduta social e cultural, como também uma doutrina simbólica e representativa que desfila como tela de comunicação, permitindo-nos entender a sociedade onde estamos encaixados. Os hábitos alimentares transferem diferenciação entre as culturas. Logo, há a necessidade de se valorizar a gastronomia regional, uma vez que a mesma é uma condição capital para o tão almejado e aplaudido reconhecimento.
As apelidadas classes predominantes ou dominantes tendem, de certa forma, a verberar e a desvirtuar o modo de vida daqueles que lhes estão subjugados. Na verdade, os dominados contemplam o consumo, por culpa do custo económico, em formatos bastante prensados e franzinos. Os dominantes exercitam amiudadamente um poder simbólico e representativo, em função da erudição, da percepção e do consumo diferenciado de alimentos e bebidas, sobre os indivíduos que consideram ter procedimentos e automatismos pouco distintos. Será que nesta ambiência “rebarbativa” não se edificam e reforçam telas de distanciamento entre as classes sociais?
A alimentação, estruturada como uma verdadeira cozinha, acaba por se metamorfosear numa autêntica marca, através da qual os cidadãos se podem direccionar, identificar e diferenciar. Mais do que rotinas e atitudes alimentícias, a cozinha envolve configurações de inteligência, discernimento e manifestação de uma determinada feição de “alma” que se pretende caracterizar e especializar a um ocasionado conjunto de indivíduos. Será que os costumes alimentares não pertencem a uma doutrina cultural simbólica, que esclarece e assinala os produtos alimentares que são edíveis e aqueles que não o são? Será que esses símbolos culturais não elaboram e comunicam algumas teses sobre a sociedade em que vivemos?
Com a disseminação da cultura fast food, há um género de abrandamento das aplicações culinárias regionais e uma aclimatação à cultura alimentar moderna. No âmago desta transformação, as colectividades deixam de desfrutar da comida, e dos sabores locais e tradicionais. Na realidade, são estes paladares tradicionais que nos indicam a nossa identidade, personalidade e cronografia. Será que a boa e tradicional gastronomia alguma vez pode ser totalmente ofuscada pela comensalidade alicerçada na identidade universal e sem singularidades locais? Será que não são necessárias políticas públicas que defendam e tonifiquem a gastronomia como bem cultural? Será que as políticas públicas não devem desembaraçar as conexões existentes entre Estado, política, história cultura, mercado, sociedade, gestão e economia?
As políticas públicas, depois de articuladas e prescritas, desembrulham-se nos projectos e programas colocados em funcionamento, constituindo-se, caso sejam profícuas e bem delineadas, instrumentos capitais de desenvolvimento e aperfeiçoamento, nomeadamente no domínio regional. A esmagadora maioria dos movimentos dos Governos está vinculada às ferramentas da política económica. Será que as políticas públicas de cariz social e cultural não transportam um contributo relevante à construção e organização da própria “legalidade”? Será que as políticas públicas culturais, particularmente as que se encaminham para a salvaguarda das identidades culturais, não constituem contextos essenciais para a edificação de diagramas com a chancela desenvolvimento? Será que as políticas públicas sociais não devem dar primazia à identificação das multiplicidades?
Os conhecimentos sobre gastronomia local, assim como as formas de produção dos ingredientes, colaboram para o desenvolvimento social, ao conservarem os apanágios culturais, e contribuem para o desenvolvimento económico, criando emprego e receitas.
A realidade patenteia que o progresso não ocorre unicamente através do crescimento económico, uma vez que o mesmo abarca a evolução em múltiplos itinerários, ou seja no económico, no social, no político, no histórico, no cultural, no rural, no urbano, no ambiental e no humano. A cultura, para além de outros tecidos, também compreende as tradições, os estilos de actuação dos povos e a gastronomia. Ressalvar também que a participação popular, em circunferência local e regional, também contribui consideravelmente para o desenvolvimento corpóreo das políticas públicas. Será que as políticas públicas já conhecem a totalidade da diversidade cultural, bem como a “temática” do património material e imaterial de Portugal? Será que o poder público não deve garantir e promover o direito à reminiscência?
A correlação entre instrução, educação e aperfeiçoamento social assume um papel fundamental em todo este processo, uma vez que é a educação que transfere a sapiência e o apreço a partir das origens históricas e culturais, bem como dos primórdios de outros povos. Será que não existem inúmeros choques entre a valorização e o respeito cultural local e o mundial?
O património cultural não está municionado de valor em si mesmo, todavia cada cidadão ou cada grupo outorga e inscreve importâncias e significados aos seus bens culturais. Neste processo são fundamentais especialistas de várias áreas, uma vez que os mesmos ajudam a conceber graus de autenticidade e legitimidade patrimonial selectiva, autenticando a importância dos elementos culturais merecedores de receber o carimbo património, bem como identificando os bens que devem ser alvo de protecção pública. Corporalizar a obsessão pelo passado, apresenta-se como uma estratégia de preservação, fundamentada na protecção de identidades centralizadas, unificadas e interligadas. Será que estas estratégias não são uma colorida contestação aos constrangimentos oriundos dos baluartes da globalização, ao desconchego do contemporâneo e às indeterminações do vindoiro?
Gastronomia e Turismo constituem dois vocábulos que jamais se devem desincorporar, uma vez que é inexequível meditar em turismo sem “preadivinhar” a alimentação para delgada ou comprida permanência. Seja qual for o destino, o turista acaba sempre por experimentar a gastronomia local. Será que os verdadeiros comensais não viajam para conhecer a gastronomia de outras regiões, assim como para observar paisagens e monumentos diferentes? Será que o turismo que abdica da saborosa comida pode ser considerado verdadeiro turismo? Será que o turismo alguma vez se dissociou da boa comida e da economia? Será que o aumento de eventos gastronómicos não reflecte a importância de a gastronomia estar coligada ao turismo? Será que comer e beber não podem ser considerados autênticos hinos de celebração? Será que os alimentos e as bebidas não podem ser contemplados como fidedignos sinónimos das palavras família, vida, convívio e amizade? Será que a investigação das origens dos povos não nos magnetiza pela importância em conhecer e entender a nossa própria essência, assim como os ruídos do mundo? Será que a preocupação com as memórias e a salvaguarda do património cultural não exigem painéis de diálogo persistente?
A cultura gastronómica acaba por ser uma espécie de representação da cidade, permeando o nosso imaginário pelo olfacto, tacto, paladar e visão. O ritual de comer estaciona nas identidades culturais, oferecendo conhecimentos e esclarecimentos sobre a disposição e armação da sociedade. As estratégias de marketing, jamais deverão desconhecer ou desconsiderar a importância dos movimentos de consumo de alimentos.
O património imaterial é transferido de linhagem em linhagem, sendo permanentemente reedificado pelas colectividades em função da sua correspondência com o ambiente, natureza e história. Esta conjuntura não só é responsável pela germinação de sentimentos de pertença, identidade e prossecução, como também pela promoção e esguardo da pluralidade cultural e da criatividade dos indivíduos. O património jamais deve ser degustado como uma substância pleonástica que cumpre os acordos sociais. Será que o património não é dinâmico? Será que o mesmo não é um credível espelho daquilo que a sociedade concebe?