Não existe qualquer espécie de obrigação internacional para que o Estado Português acomode o enriquecimento ilícito como crime, devendo a escolha da tipificação reverenciar a Constituição e os cânones elementares do ordenamento jurídico.

Na verdade, seria bastante inabitual que um documento processado pela Organização das Nações Unidas (ONU), de chancela internacional portanto, não promovesse a salvaguarda dos princípios fundamentais do Estado de Direito. Actualmente os vestígios de corrupção são bastante complicados de investigar, uma vez que os mesmos habitualmente embrulham correntes financeiras com entidades bancárias que desfilam nos tenebrosos paraísos fiscais. Será que existem verdadeiros impedimentos constitucionais para a aplicação do crime de enriquecimento ilícito no ordenamento jurídico português? Qual o motivo de tantas hesitações? Será que não existem efectivos e obscuros interesses que provocam o entorpecimento dos legisladores? Será que a tipificação de um crime hospeda sempre a “livre” decisão dos legisladores? Será que alguns grupos de pressão não surpreendem, constantemente e de forma desfavorável, esses mesmos legisladores? Será que o respeito pelos princípios fundamentais do Estado existe em todos os “parâmetros” sociais e políticos?

É necessário ter a noção de que quando falamos em crimes de corrupção, estes acabam por ter maior impacto na soberania popular. Portanto, há a necessidade de se garantirem instrumentos jurídicos para a condenação destes crimes, devendo-se, simultaneamente, exteriorizar que a doutrina jurídica trabalha e é diligente. Esta condição proporciona aos indivíduos, especialmente na circunferência da soberania popular, confiança e segurança na justiça.

O combate à corrupção é concretizado por um conjunto de sistemas, doutrinas e instituições que desafortunadamente nos mostra que o talento, os procedimentos e as primazias nem sempre estiveram em sintonia. A actuação das instituições nacionais de controlo é determinante para o uso normal e legítimo das finanças públicas, assim como para o desempenho do Estado como verdadeiro impulsionador do desenvolvimento económico e social. A sociedade civil organizada, os cidadãos em geral, o Ministério Público, as dissemelhantes polícias, e, especialmente, os órgãos do Governo aquartelam a missão de proporcionar os mecanismos necessários para aniquilar ou diminuir os sulcos, originados pela corrupção, existentes na superfície pública. Será que o princípio capital da democracia não é aquele que se estabelece numa conexão de representação política entre eleitores e eleitos? Será que os eleitos não têm o dever de proteger os interesses dos eleitores? Será que a Administração Pública usufrui de todos os recursos disponíveis? Será que a mesma alcança todas as suas finalidades? Será que a presença de fiscalização interna, consistente, sólida e aplicada pelos órgãos públicos, não constitui uma condição essencial para acautelar possíveis práticas de corrupção? Será que a criminalização do enriquecimento ilícito não deverá ser saboreada como um mecanismo que estimule, de forma irrefutável, a perspicuidade da Administração Pública?

Torna-se fundamental saber se o enriquecimento ilícito “estaciona” em conjecturas e voltagens políticas ou jurídicas, bem como ter a noção de quais são os autênticos valores em causa para a sua “utilização”. Será que não é importante a existência de critérios e raciocínios, confeccionados por especialistas em natureza penal, para a correcta criminalização do enriquecimento ilícito? Será que podemos conceber um crime, no seio do ordenamento jurídico, quando existem perplexidades e incertezas quanto à sua aplicação? Será que os aparelhos de fiscalização não devem arrogar a igualdade de direitos entre as diferentes “assembleias” de poder e entre as dissemelhantes entidades privadas?

Infelizmente o nosso País ainda acarinha titulares de órgãos de soberania que tomam deliberações no valor de muitos milhões de euros e que nem sequer são obrigados a declarar o seu património ao Tribunal Constitucional. Será que esta conjuntura não vai ser responsável pela efectivação de denúncias, mesmo quando não se tem conhecimento completo da totalidade dos rendimentos? Será que a luta contra a corrupção, enquanto não desfilar na sociedade um eficiente planeamento e uma rigorosa estruturação dos mecanismos preventivos, não vai continuar franzina? Será que a criminalização do enriquecimento ilícito é um instrumento constitucionalmente incontestável?

Na composição do crime de enriquecimento ilícito, o legislador pode perfilhar duas condições diferentes, ou seja tem a possibilidade de caracterizar o comportamento proibido como uma omissão ou como uma acção. Será que na realidade o enriquecimento ilícito é decretado como um crime de corrupção ou como a fortuna “indecifrável” por si? Será que o enriquecimento ilícito deve ser contemplado e degustado como sucedâneo do crime de corrupção ou da criminalidade organizada? Será que circunscrever o crime de enriquecimento ilícito unicamente a estes dois fenómenos não é altamente desaconselhado?

Podemos certamente referir que o crime de enriquecimento ilícito acaba por compreender duas componentes: a percepção que existe aquando da aceitação de fundos trajados a corrupção e o facto de se possuírem artigos provenientes da corrupção. É fundamental combater os proveitos ilícitos, contudo a demolição da base económica de actividades ilegais ainda assume maior relevância e pertinência. A imposição de um ónus de prova não exige ao suspeito um esclarecimento da natureza da riqueza, mas sim provas das suas operações e transacções. Será que a “consciência” de receber fundos corruptos não pode ser penosa de provar? Será que os funcionários não podem argumentar que certos pagamentos constituem uma prenda? Será que os direitos e poderes constitucionais não devem ser interpretados e adoptados tendo em conta a Constituição da República Portuguesa? Será que a “intenção” e o “resultado pretendido” podem ser considerados “sinónimos”? Quais foram os mecanismos concebidos para auxiliar o Ministério Público na obtenção das provas?

A transparência da Administração Pública deve estar sempre patente nos seus funcionários. Na realidade, acaba por ser um “requisito” que os indivíduos têm para com a função pública. Quando é descoberta uma situação patrimonial irregular num funcionário, a mesma desencadeia desconfianças quanto à legitimidade da actuação da Administração, golpeando a segurança e os índices de confiança que os cidadãos lhe consignam. A indispensabilidade de se regimentar, em configurações distintas, equitativas, apropriadas e especiais, a Administração Pública recai, sobretudo, na importância que a mesma assume para a sociedade em geral. A Administração Pública agasalha a incumbência de saciar as necessidades colectivas sentidas pela sociedade. Na realidade, essas carências devem ser observadas e assumidas como empreitadas capitais do Estado. Será que o Estado, o sector público e a Administração Pública são realidades iguais? Será que essa analogia não carece de rigor, severidade e meditação? Será que as noções de défice público e de necessidades de financiamento dispensam as teses elucidativas?

A maioria dos cidadãos perfilhou uma definição bastante abrangente em relação ao sector público, incluindo no mesmo a “totalidade” da Administração Pública, bem como o somatório do sector empresarial de capitais maioritariamente públicos. Será que aquilo que diferencia as entidades do sector público administrativo das do sector empresarial não é a lógica, o propósito e o modo de funcionamento? Será que não existem diferenças significativas em relação aos seus campos de acção e às fisionomias de apuramento das contas? Onde se situa a lógica de mercado? Quais são as dificuldades intrínsecas à caracterização das entidades públicas administrativas?

Os esforços de modernização administrativa têm-se orientado por desígnios relacionados com a descomplicação, eficácia, equidade e clareza, sempre no sentido de prestar melhores serviços aos cidadãos. O incremento e a gestão da qualidade constituem “recursos” para granjear essas metas. Infelizmente, em algumas ocasiões, estes imperativos entram em incompatibilidade entre si. A qualidade, assim como a transparência e a política de portas abertas têm sido alvo de sucessivas “inquietações” por parte dos Governos. Todavia, ainda existem aspectos “homenageados” na lei que estão por implementar.

Para terminar este tema, desenvolvido ao longo das últimas quatro crónicas, e considerando o agravamento da fraude, do embuste, da putrefacção e da corrupção em Portugal, tenho que admitir que concordo com a criminalização do enriquecimento ilícito. Também defendo que o crime de enriquecimento ilícito deve constituir “identicamente” um mecanismo de promoção da transparência das actividades entre os particulares, devendo, desse modo, ser alargado a todos os cidadãos, uma vez que todos têm o dever de perspicuidade na sua correspondência com o Estado. Acredito que este crime só não se encontra devidamente regulado no nosso ordenamento jurídico, não pelos graus de complexidade que agasalha, mas sim pela falta de vontade e pelos persistentes interesses sombrios. Será que não é fundamental disseminar as razões da ineficácia da fiscalização actual? Será que as conveniências de cariz particular não deviam ter menos vigor? Será que os interesses públicos não devem estar acima dos interesses privados? Será que não é elementar a concepção de aparelhos eficazes de acompanhamento do enriquecimento dos agentes públicos? Será que essa concepção seduz aqueles que habitam no cume da pirâmide?

Por decisão pessoal, o autor do texto não escreve segundo o novo Acordo Ortográfico.