Na realidade, a prevenção e o tratamento em relação ao uso e abuso de drogas, assim como a reinserção social e familiar constituem movimentos associados às políticas de saúde, de educação e de assistência social.

Quando nos inclinamos sobre o sistema ou o processo histórico de edificação da legislação e da política social portuguesa, naquilo que concerne à problemática da dependência química, facilmente compreendemos que o uso de drogas nas políticas públicas foi analisado e tratado durante décadas como “ocorrência de polícia”, tendo contemporaneamente adquirido a “chancela” de saúde pública. Os indivíduos toxicodependentes eram alvo de robustas acções de coibição, não sendo diferenciados dos traficantes. Posteriormente e gradativamente essa diferenciação despontou, mantendo a repressão na produção ilegal e no tráfico ilícito de estupefacientes, bem como promovendo movimentos de prevenção em relação ao uso indevido; contextos de “atenção” e de “cuidado”; e mecanismos de reinserção social. A legislação, ainda que paulatinamente, acabou por construir uma diferenciação entre o que é ser consumidor e dependente de drogas, e o que é ser traficante de drogas. O tráfico de estupefacientes continua a ser assinalado como crime. Por sua vez, os indivíduos consumidores de drogas estão sujeitos a penas alternativas, assim como a medidas socioeducativas. Portanto, a pena limitativa de liberdade deixou de ser aplicada aos “meros” consumidores de drogas. Será que o rigor das penas, para os traficantes de drogas, não devia ser incrementado? Será que presentemente o Estado não conta, fundamentalmente, com as organizações do terceiro sector para a concretização de acções enunciadas e estruturadas nas suas próprias políticas? Como se definem as organizações do terceiro sector? Quais são as parcerias públicas que existem com as mesmas? Será que muitas das comunidades terapêuticas não progridem em direcção a um trabalho concentrado nas indicações e nas directrizes das políticas sociais?
Na realidade, a prevenção e o tratamento em relação ao uso e abuso de drogas, assim como a reinserção social e familiar constituem movimentos associados às políticas de saúde, de educação e de assistência social. As comunidades terapêuticas, tradicionalmente assinaladas por atenderem cidadãos provenientes de classes sociais fragilizadas pela indigência, tiveram que adaptar-se aos princípios legais, até porque a dependência química ingressou no domínio da saúde pública. Será que as políticas de assistência social e de saúde, com sustentáculo nas suas directrizes, instruções, normas e finalidades, não “contemplam” as comunidades terapêuticas como superfícies alternativas de atendimento psicossocial? Será que os encadeamentos entre as políticas públicas e as comunidades terapêuticas, no que respeita ao atendimento e tratamento dos indivíduos consumidores de substâncias psicoactivas, estão declarados nitidamente na legislação vigorante que “manuseia” este fenómeno? Será que não é fundamental o reconhecimento da função que cada entidade pública e privada agasalham no atendimento e no tratamento à dependência química? Será que não são inúmeros os agentes institucionais envolvidos? Será que não devemos hospedar a noção de que o principal “agente” participante deste sistema não é o institucional, mas sim o humano?
Podemos seguramente asseverar que as políticas de assistência social compreendem cidadãos e grupos que se encontram em conjunturas de vulnerabilidade e risco como sejam famílias e cidadãos: destituídos de vínculos de afectividade, de pertença e de sociabilidade; com histórias de vida ricas em sofrimento e miséria; que convivem amiudadamente com os diferentes formatos de violência; desprestigiados etnicamente, culturalmente e sexualmente; estigmatizados por serem portadores de deficiências; excluídos pela pobreza económica e mental; e consumidores de substâncias psicoactivas.
Como sabemos, o incremento do uso de drogas lícitas e ilícitas é alvo de inquietação e de discussão em inúmeros Países, pois o mesmo constitui uma cominação ao equilíbrio e à permanência das estruturas e configurações Estatais, influenciando os valores políticos, culturais, económicos e sociais. Na realidade, os consumos e os graus de dependência em relação às drogas constituem um fenómeno que é transversal a qualquer sociedade, tanto na variável espaço, como na variável tempo. Uma das particularidades deste fenómeno nas sociedades ocidentais hodiernas consiste na possibilidade de colocar de lado estes consumos e graus de dependência através do recurso a ajudas formais. Será que as dependências, no âmago de uma perspectiva ecuménica, não podem ser definidas como fenómenos sociais específicos das sociedades modernas e capitalistas? Será que uma das principais razões deste fenómeno não está alicerçada no estilo de vida cimentado no prazer? Será que não assistimos a uma procura incessante e persistente das texturas de prazer? Será que essa ininterrupta procura não é hiperbolizada na medula da sociedade de consumo? Será que não existe uma enorme independência moral que proporciona a assunção de escolhas ou de preferências como fazendo parte de um ocasionado modo de vida? Será que os consumos de drogas não devem ser interpretados como uma selecção individual alicerçada numa atmosfera que desperta a procura do prazer? Será que a “sociedade” percebe qual é o motivo que leva um consumidor de drogas a procurar tratamento? Será que não é unicamente uma exígua parcela dos consumidores de drogas que pretende abandonar o ciclo de consumos, recorrendo à ajuda formal? Será que a decomposição desta temática somente deve ser centralizada num conjunto específico de consumidores, ou seja aqueles que pretendem deixar de o ser? Será que os indivíduos não edificam as suas identidades pessoais, tendo em conta as opções que constantemente têm de fazer nas sociedades contemporâneas?
Apesar de grupos de indivíduos partilharem um idêntico emolduramento de experiências, despontam modernas configurações de segmentação e de disseminação que acabam por estabelecer, na essência de cada indivíduo, uma espécie de diagrama meditativo na conjunção da optação múltipla ou variada. Na verdade, as eventualidades ou as possibilidades ilimitadas com que a essência de cada um é cotejada possibilitam o perfilhamento e o acompanhamento de percursos de realização ou de segregação social ao longo da sua vida, dependendo da capacidade e da inteligência de movimentar mecanismos e recursos diversificados. Será que não é relevante elaborar mais investigações na área das ciências sociais em que são analisados indivíduos que abandonaram o consumo de drogas?
Podemos seguramente referir que a decisão de um indivíduo se desprender das etapas de consumo acaba por ser consequência de um “empreendimento” cogitativo que compreende um esforço de reedificação de si mesmo, ou seja do seu próprio âmago. Logo, é o resultado de uma tomada de decisão segundo as opções exequíveis e disponíveis. Será que não é fundamental reflectir sobre o método de “industrialização” que os tratamentos para indivíduos toxicodependentes têm sido alvo, de forma a obter maiores índices de especialização e de habilitação profissional nesta superfície?
Contemporaneamente existe um quadro diversificado de ofertas para a reabilitação de toxicodependentes, situação que pode ser compreendida no seio de uma lógica ou de perspectiva de mercado que impõe que para uma determinada carência existem inúmeras ofertas ou recursos disponíveis, optando o consumidor pelo método que melhor se adequa às suas necessidades e contingências.
A dependência química pode ser degustada como uma imposição do organismo que para preservar uma eventual harmonia ou anular uma tensão requer o consumo periódico ou contínuo de um produto químico oriundo do exterior, provocando resultados danosos à sociedade e ao indivíduo. Será que o fenómeno da toxicodependência não reclama por intervenções de temperamento pluridisciplinar e interdisciplinar? Será que essas intervenções não se principiam quando o indivíduo toxicodependente tem consciência do seu problema e solicita apoio? Será que as mesmas não se prolongam durante todo o tratamento? Será que essas intervenções não se apresentam eficazes somente quando o indivíduo dependente químico, na totalidade das suas dimensões biológica, afectiva, psicológica, e social, consegue identificar e concretizar um itinerário de vida independente e desprendido do uso de drogas?