A cidade usufrui de uma imagem pública que se edifica através da aposição das imagens produzidas por inúmeros indivíduos.

As imagens de uma cidade não se sintetizam aos contextos que são observados na sua objectividade e “imparcialidade”, ou seja, libertos das desarrumações oriundas da fantasia, do desejo, da criatividade e da divagação de um idealista. A cidade, enquanto paisagem e fragrância, agasalha a imaginação, a inspiração e a invenção como propriedades basilares da sua própria interpretação e compreensão. Na retaguarda das imagens presenteadas à objectividade do olhar, desfilam as imagens momentâneas, despontadas do encadeamento directo do indivíduo com a cidade. Será que não é importante, numa tela de leitura da cidade, ter algumas doses de atenção e de ponderação para não se confundirem as imagens do universo real com aquelas que são arquitectadas e inventadas?

A superfície urbana, intimamente conectada à modernidade, acolhe viscerais e diferenciadas transfigurações que acabam por lhe modificar a silhueta, a “sombra” e o temperamento, assim como a vida, as experiências, as práticas, os sonhos, as necessidades e os receios dos cidadãos. Todas as configurações parecem não só estar repletas de ambivalência e de ambiguidade, como também em ininterrupta metamorfose, transformando o “panorama” e a edificação do imaginário da cidade. Será que os novos cabimentos urbanos não se transvertem em espaços e objectos de uma contextura visual que recita e é recitada por um conjunto de renovadas experiências objectivas e subjectivas?

Entretenimento e alienação; contentamento e pânico; volubilidade e imobilidade; e desenvolvimento e segmentação constituem “preceitos” que estabelecem as principais características da cidade do século passado. A cidade pode ser analisada de modo genérico, mas nunca podemos esquecer que a mesma tem particularidades próprias. Será que cada época não edifica a sua própria concepção de cidade?

A cidade usufrui de uma imagem pública que se edifica através da aposição das imagens produzidas por inúmeros indivíduos. Realçar que cada um desses indivíduos hospeda uma imagem própria, singular, individual e ímpar da cidade. As grandes cidades fascinam o homem, exercendo sobre o mesmo um vigoroso magnetismo que, em variadíssimas circunstâncias, serve de tema para a literatura. Será que este observar literário não reedifica a superfície urbana, organizando-a, balizando-a ou dilatando-a?
Podemos seguramente afirmar que o século XIX foi pródigo em profundas transformações, tanto na área intelectual, como na social e tecnológica. A colisão tecnológica ocorrida entre o final do século XIX e o início do século XX apresentou as telas do progresso às populações. As inovações, numa primeira fase, foram degustadas como matéria esquisita ou estranha, tendo sido, esta conjuntura, um autêntico repto para o imaginário da época. A automatização do trabalho humano libertou um remanescente período de tempo e obrigou os cidadãos a aclimatarem-se às novas orientações de tempo e de espaço.

As cidades medraram em população e em território ocupado. As ruas abandonaram o conceito de via de passagem, conquistando vida, espírito e personalidade. As ruas são espaços de passeio, de meditação, de entretenimento, de comunicação, de ostentação e de exibição. Nas ruas desfilam diferenças sociais, sentimentos de superioridade e preferências exageradas de tudo aquilo que está na moda. A rua democratizou-se!

As inovações tecnológicas alteraram completamente a compreensão, a consciência, a sensibilidade e a emoção urbana. Todavia, todos esses contextos de mudança de interpretação e de percepção não se “promulgaram” de modo pacífico, tendo existindo resistências à padronização, nomeadamente pela transformação da própria consciência do tempo. O tempo passou a ser concebido segundo as convenções humanas e como substância abstracta, sequenciada e uniformemente distribuída. Existiu um tempo que foi extorquido pela técnica, pois esta adensa e abrevia. Será que o imaginário e a subjectividade não foram “amputados” ou limitados pela chancela tecnológica?

A decomposição dos encadeamentos de produção alicerçados num arquétipo feudal e a Revolução Industrial transferiram boa parte da população do meio rural para o meio urbano. Começaram a edificar-se ligações viscerais entre a literatura e a cidade, na qual se encontravam e centralizavam as editoras, as bibliotecas, as livrarias e os museus. Será que a cidade não passou a ter o monopólio da economia e da cultura? Será que o repto de decifrar as engrenagens e os funcionamentos da cidade moderna não inaugurou um conjunto de novas fronteiras disciplinares? Será que contemporaneamente as cidades não são cenários cada vez mais intrincados de negociação económica, social e cultural? Será que no âmago da cidade não há uma concentração de linguagens? Será que a descodificação de linguagens não é uma empreitada do leitor de cidades?

A geografia cultural, devido sobretudo ao interesse gradual pela extensão cultural do espaço, reconsiderou alguns dos seus conceitos; redimensionou o espaço geográfico; e redefiniu espaço, tempo e cultura. Por sua vez, a literatura não ficou indiferente às novas interrogações, respostas e explicações enunciadas pela geografia cultural, aceitando uma espécie de ajustamento do espaço literário.

As cidades que conseguem ter a chancela de cidades literárias têm inúmeros acontecimentos literários, bibliotecas, livrarias e centros culturais que promovem verdadeiramente a literatura nacional e internacional. O desenvolvimento do sector editorial na tradução de obras nacionais para outras línguas, ou o inverso, acaba por constituir uma condição que assume cada vez maior relevância. As bolsas de incentivo à literatura devem estar alinhadas com os propósitos do Plano Nacional de Leitura e contribuírem não só para o robustecimento da corrente criativa do livro, como também para a promoção da literatura portuguesa. Torna-se essencial incentivar a criação, a produção e a divulgação literária nacional; patrocinar a investigação no campo da literatura portuguesa; promover a formação e a sustentabilidade dos escritores portugueses; valorizar a diversidade cultural; despertar a “bibliodiversidade”; e espertar o contentamento tendo como pano de fundo a leitura literária.