A Capeia é o testemunho resiliente que há em cada um de nós e que forja a memória colectiva.

A incontida alegria, o enorme orgulho e o sentido de honra invadem os mordomos da Capeia. As memórias atropelam-se: o corte do forcão; o encerro; o rufar do tambor; o “passeio”; o “bandear da bandeira”; a “espera” do primeiro boi da tarde; e o olhar intenso e açucarado das moças.

Era e continua a ser, face ao código de conduta das nossas gentes, um ritual que simboliza a transição da meninice/adolescência para a “vida adulta”.
Inunda-me a alma o sabor doce da nostalgia e turva-se a vista pejada de saudade. Sentimento de amor e de responsabilidade. Por mim! Pelos meus antepassados! Por todos nós!


Este recanto do território raiano, a que chamamos “Raia”, moldou-nos a todos, deu-nos tudo aquilo que fomos e tudo aquilo que somos. Elo essencial à nossa expressão enquanto povo: os touros ou os bois, como lhes quisermos chamar. A Capeia Arraiana jamais se deve confundir com um qualquer espectáculo. A Capeia Arraiana, para nós raianos, é a nossa alma identitária.


“Sentimos” as investidas dos bois, ouvimos o som da galha a rachar, e, com um “vaso de vino” à mistura, partilhamos e comungamos a nossa maneira de ser. Sensação que nos une, os da “terra” e os de “fora”. Sempre irmanados pelo mesmo sentimento, um sentimento feito da argamassa dos que já não estão entre nós. Cumprir a nossa identidade!


A Capeia é o testemunho resiliente que há em cada um de nós e que forja a memória colectiva, recordada nas tardes das Capeias, mas também à luz do crepitar das lareiras que povoam as nossas aldeias, porque as Capeias são isso mesmo, vividas todo o ano, alimentadas pela terna recordação dos feitos e nalguns casos, no limite, dos que tombaram nas praças da raia.


A “Capeia Arraiana” não é um mero ritual que procura a sua essência no confronto entre o homem e o touro, pois a sua essência é de tal modo imensurável que até nós, e mesmo estando entranhada nos Raianos, não temos, por vezes, consciência de que é muito mais do que isso!


As terras agrestes e frias da Raia talharam o carácter dos Raianos e projectaram-no na “Capeia”: na “espera ao forcão” condensa-se o medo, enfrenta-se a desgraça, prende-se a respiração, come-se o pó, lava-se o suor do nosso rosto, solidificam-se laços de camaradagem, solda-se a solidariedade, emerge o espírito de entreajuda…torna-nos humildes, mas firmes!


Porque à volta do forcão, todos dependemos de todos, 30 ou 40 rapazes ou homens dos mais diferentes estratos ou condições sociais, mas partilhando todos uma ligação umbilical à “terra” que nos viu nascer ou que trazemos ao peito, nenhum de nós quer saber o que o outro faz, se é agricultor ou engenheiro, doutor ou trolha…, mas tão somente, tão simples quanto isto, que cada um, sendo igual a cada um de nós, se conheça e saiba o que é ter alma ao forcão!


Afinal, o destino de todos está nas mãos de cada um, pois a sorte de todos está refém de um pé cruzado, de um passo errado ou de uma galha levantada, mal medida, face à investida do boi.


O périplo pelas Capeias incrustadas ao longo da linha da Raia do Sabugal dá cor ao nosso imaginário, pincelado pelas recordações e emoções, que amiudadamente revisitamos e acrescentamos. O Encerro, cheio de cor e de alegria, é a natureza, sem ruído, que trazemos para o seio das nossas aldeias, numa combinação única no mundo: homens, cavalos e sempre eles, – e nunca sem eles -, … os bois!


Embarga-se a alma quando recordo aqueles que tombaram para sempre, embebidos no pó das praças da Raia, em alguns casos porque os conheci e noutros porque me foi passado esse testemunho pelos meus antepassados.

Todos pagaram com a própria vida o amor que tinham às suas raízes identitárias, resta a cada um de nós, até porque lhes devemos isso, perpetuar esse tributo, pois na realidade eles fazem parte da nossa memória colectiva. Desliguem as televisões e os telemóveis, e à sombra das noites quentes de Inverno, à lareira, repliquem e transmitam, junto dos mais novos, que estes homens são mais do que lendas, pois estão vivos na memória de cada um de nós e, sem eles, a nossa identidade não seria seguramente a mesma.