Na realidade, ainda existe uma percentagem considerável de pessoas a viver na rua sem qualquer tipo de auxílio.

O período de permanência em condição de sem-abrigo assume um papel fundamental na reinserção dos indivíduos, pois as inúmeras vivências estigmatizantes a que estão sujeitos podem edificar trincheiras inultrapassáveis à inversão da situação.

Os sem-abrigo, ao longo do tempo e a partir da experiência de rua, acabam por construir uma nova identidade e reinventar um conjunto de estratégias de sobrevivência num ambiente altamente hostil à mudança.

Será que ser sem-abrigo é um modo de viver? Será que ser sem-abrigo não é um modo de sobreviver? Será que a definição de sem-abrigo não compreende uma sucessão de contextos que está intimamente associada à falta de meios, a profundas fragilidades e à exclusão social?

As necessidades dos sem-abrigo podem ser idênticas, mas, simultaneamente, diferentes, pois é seguramente um equivoco comparar a vida de um indivíduo na rua há vários anos com a de um individuo que vive na rua há pouco tempo.

As divergências familiares e conjugais, os problemas de saúde, a falta de alojamento e o desemprego são certamente as principais texturas que encaminham os indivíduos à conjuntura de sem-abrigo.

As mulheres apresentam maiores índices de capacidade, de competências interpessoais e de desenvoltura para recorrer a redes de apoio social e familiar, de modo a ultrapassar os problemas ligados, por exemplo, ao alojamento.

De referir também que muitas mulheres sem-abrigo, de forma a suplantar a miséria, encontram-se no sórdido mundo da prostituição.

Quando o homem se encontra na situação de desempregado acaba por ser contemplado socialmente como inútil. O desemprego e a perda de alojamento, por ausência de rendimentos, protelam paulatinamente a procura de um novo trabalho.

Este encadeamento de factores pode conduzir à situação de sem-abrigo. Será que em Portugal não existe falta de apoio institucional para os sem-abrigo?

Será que o estigma da marginalização não fica estampado no rosto e na aparência física? Será que este contexto não inviabiliza toda e qualquer tentativa de reintegração no mundo do trabalho?

Será que a quebra de laços sociais não fortalece as telas do isolamento social? Será que muitos dos sem-abrigo não contam unicamente com outros indivíduos em situações similares? Será que estas conexões não são meramente funcionais?

Será que estas conexões conseguem metamorfosear-se num verdadeiro e sólido suporte ou aconchego? Será que o mercado de habitação e de trabalho são capazes de responder a todas as situações? Será que os serviços sociais têm capacidade para fornecer suportes adequados no tempo e no espaço?

Infelizmente a passagem por unidades hospitalares, estabelecimentos prisionais e centros de acolhimento espelha o percurso de vida de inúmeros sem-abrigo.

Na realidade, ainda existe uma percentagem considerável de pessoas a viver na rua sem qualquer tipo de auxílio. Amiudadamente os apoios institucionais são franzinos e os sem-abrigo apresentam elevados índices de descrença em relação aos mesmos.

O género de intervenção desenvolvida junto desta população parece ser exclusivamente assistencialista, focando-se apenas na distribuição de alimentos, de vestuário e de produtos de higiene.

O Rendimento Social de Inserção, pelas condicionantes expressas na própria legislação, não se constitui como medida adequada aos sem-abrigo.

Na verdade, o Rendimento Social de Inserção não abrange as disposições de maior precariedade social e económica, implicando também um conjunto de procedimentos burocráticos que discriminam todos aqueles que não têm possibilidade de recorrer à ajuda de terceiros para oficializar as suas pretensões.

Será que não é necessário reformular as políticas sociais? Será que as políticas sociais não devem abraçar a efectiva intervenção social? Será que o carácter curativo não deve estar constantemente coligado com o preventivo?

Será que o carácter curativo, por si só, diminui a pobreza e a exclusão? Será que as políticas sociais inclusivas não são determinantes para fazer face ao problema?

Será que este fenómeno social não tem perímetros cada vez mais heterogéneos e emaranhados? Será que a pobreza, até pelas suas características de difícil definição, tipificação e medição, não precisa de políticas sociais sólidas e de respostas institucionais abrangentes?

Será que a reinserção e a prevenção não constituem condições que devem ser reforçadas no âmago das políticas sociais? Será que a reversão dos pardacentos processos de marginalização e de exclusão não deve assumir papel de destaque?

Será que as desigualdades económicas conseguem explicar todos os contextos que caracterizam o processo de exclusão social? Será que a agonia, o silêncio, a solidão, a fome, o frio, os olhos cansados e a roupa rasgada não provocam nos sem-abrigo uma luta inconstante?

Será que os sem abrigo acreditam num mundo melhor? Será que não ignoramos constantemente os sem-abrigo? Será que não somos uma cambada de hipócritas?