A sobreposição do universal com o ocidental aconteceu muito por culpa de um conjunto emaranhado de processos e sistemas que tiveram o seu princípio com a conquista do Hemisfério Ocidental pelos Europeus. Este acontecimento metamorfoseou visceralmente o equilíbrio, o comedimento e a simetria de poder ao nível mundial, possibilitando que a época da supremacia global europeia se tornasse exequível. A fundação de uma hegemonia ocidental simbolizou que a “predestinação” do Ocidente passou a ser desenhada como sendo a história do mundo inteiro. Salientar que este domínio não foi simplesmente de cariz económico, político e militar, uma vez que também desfrutou de uma vigorosa chancela cultural. A modernização transformou-se num autêntico sinónimo de ocidentalização, na medida em que a configuração corpórea da modernidade somente poderia ser confeccionada a partir das execuções e condutas culturais europeias. O eurocentrismo aparece como sinónimo do que é europeu ou ocidental. Ou seja, a supremacia do Ocidente apoiou-se na confluência entre valores universais e valores ocidentais.
O homem moderno era aquele que se trajava, dormia, caminhava, dialogava, comia e vivia como europeu. As restantes sociedades e culturas não tinham outro caminho, para conseguirem todas as benfeitorias que a vida no Ocidente facultava, senão o de escoltar as “pisadas” do território ocidental. O destino do mundo era claramente a ocidentalização. Actualmente é o descentramento do Ocidente que a estratégia do eurocentrismo procura atenuar. Portanto, podemos referir que o eurocentrismo é um projecto que procura cerrar o hiato que vai desligando o universal do ocidental.
O mundo muçulmano que despontou na prossecução dos impérios europeus acabou por ser modelado na superioridade das práticas culturais do Ocidente. Talvez o mundo tenha acreditado que, com o decorrer do tempo, os muçulmanos haveriam de desaparecer. O mundo hodierno seria, nessa perspectiva, um mundo sem muçulmanos, com o Islão a ser uma simples reminiscência ou um trivial “artefacto” de estudo superficial. A confiança na hegemonia do Ocidente começou a ficar abalada por alguns acontecimentos indecorosos, como por exemplo o Holocausto, que foram surgindo de forma reiterada. Será que não é a desvinculação do universal e do ocidental que produz a conjuntura ideal para o fortalecimento do Islamismo?
A questão muçulmana aconchega uma essência mais política do que religiosa. Como não existe um chefe religioso soberano, o Corão é interpretado e comboiado segundo os conspectos culturais de cada País, sem nunca abandonar o seu âmago divino. Os fundamentalistas levam o Corão ao lado da letra, procurando as suas origens e perfilhando códigos civis, penais, culturais e políticos ali redigidos, os quais eram harmónicos com a forma de vida do século VII. Todavia, a esmagadora maioria da população retira do Corão os preceitos e cânones divinos que formam os seus dogmas, pensamentos, máximas, estados de espírito e crenças. Os meios de comunicação ocidentais outorgam maior destaque aos problemas religiosos, sociais, culturais e políticos do mundo oriental do que propriamente do ocidental, contudo convém nunca esquecer que as inflexibilidades e atrocidades religiosas estão presentes em todas as sociedades, religiões e épocas. Será que é coincidência a perturbação de identidade do Ocidente ser representada pela presença do Islão? Será que o Islão não representa de certa forma o passado histórico do Ocidente? Será que uma cultura centrada no conceito do divino, na sua citada intransigência e no seu alegado fanatismo, não sugere perfeitamente a forma como o Islão funciona? Será que esse Islão não é um verdadeiro espelho do passado do próprio Ocidente?
O Islamismo, na sua configuração medular, limita-se a bosquejar o seu próprio itinerário em direcção a uma existência benigna e salutar, fortificada com as suas próprias concepções de bem e de mal. A quebra da ligação que acorrentava o universal ao ocidental procriou uma extensão em que se torna exequível que diversos sistemas e arquétipos culturais encontrem nomenclaturas políticas também dissemelhantes.
Inúmeros movimentos islamitas foram obrigados a suportar os efeitos e os resultados das tentativas de conservação do monopólio do poder por parte das elites apostadas na “ocidentalização”. As estratégias utilizadas contra os islamitas foram: as campanhas de extermínio desacorrentadas e levadas a cabo pela “comissão” argelina; as constantes proscrições legislativas; os descoloridos subterfúgios de difamação empregues pelos denominados regimes moderados; os inúmeros combates sórdidos; a pérfida e pertinaz perfilhação da veemência e da violência; e, em algumas circunstâncias, a completa e sanguinária desconsideração pelos direitos humanos. Será que alguns dos obstáculos que os islamitas tiveram de enfrentar não foram, e numa perspectiva meramente histórica, os mesmos que apareceram no trajecto de outras tentativas de restruturação “transfronteiriça”?
Na esmagadora maioria das sociedades muçulmanas, boa parte da população continua vocacionada para os encantos da ocidentalização. Trata-se de uma “fracção” de população que aquartela a capacidade de se contemplar e rotular a si própria como liberal e democrática. É com esses tons e modulações que a mesma se pretende apresentar aos ocidentais. Todavia, esse seu afecto em relação à democracia não é capaz de demover muitos desses indivíduos no apoio às medidas antiliberais delineadas contra os islamitas pelo próprio mecanismo de Estado.
As divisões e circunscrições que contemporaneamente perfuram o mundo muçulmano são sancionadas, manuseadas e ratificadas por uma disposição internacional que acaba por ser estabelecida pela recente aliança, sempre comandada pelos Estados Unidos, das “fundamentais” potências europeias. Esta espécie de nacionalização do Islamismo significa que os grupos islamitas têm a inclinação para “movimentos” de insularidade e que amiudadamente são constrangidos a perfilhar orientações políticas que contradizem as finalidades e os desígnios islamitas.
A dissertação do capitalismo domina a presente movimentação e sequência mundial, a qual oferece primazia à subjectividade de um qualquer comprador “supremo”. Logo, a totalidade dos valores e das asseverações metamorfoseiam-se num objecto de selecção e consumo embebido em temperamento individual. Os islamitas fracassaram na procura de uma economia islâmica, uma vez que nunca conseguiram contrariar a “elocução” do capital universal. Na realidade, as suas estratégias e os seus combates concentraram-se maioritariamente em assuntos de regulamentação e de probidade moral. Será que os islamitas não deviam ter procurado sobrepujar as próprias “demarcações” do capitalismo global?
Actualmente existem cristãos e muçulmanos a “fermentar” na Península Balcânica; associações religiosas extremistas que já realizaram imensas acções, impregnadas de terrorismo, nos Estados Unidos; combates entre hinduístas e budistas no Sri-Lanka; milhões de condenados sem direito a defesa; territórios minados para aqueles que pisam no lugar errado; e seitas religiosas maníacas na África onde se suicidam aos mil em configurações colectivas. Realçar que também existiu a Inquisição cristã que teve o seu princípio na Idade Média, mas que actuou com índices de maior sanguinolência e inflexibilidade na Idade Moderna, matando um incalculável número de pessoas em nome da cristandade. Será que o problema reside nas religiões? Será que o mesmo não está no âmago das políticas internas e internacionais? Será que parte do problema não habita nos homens? Será que no Corão, no Torah e no Evangelho não estão explicitas inúmeras propostas de amor, dilecção, condescendência, respeito e vida? Será que algum deles aconselha a matar?
O Islamismo, que no fundo é uma tentativa de outorgar expressão a um ordenamento de cariz político fundamentado no Islão, unicamente desfrutou de sucesso no Irão. Contrariamente, outros regimes islamitas, como aconteceu no Afeganistão e no Sudão, não tiveram a capacidade, senão por apressados intervalos de tempo, para se conservar no poder.
A comunicação internacional, na qual se aborda o terrorismo, estruturada pelos Estados Unidos e posteriormente aproveitada pelos regimes autoritários acabou por se metamorfosear em algo influente e até preponderante. Referir ainda que qualquer desconfiança sobre a soberania e superioridade do Estado também era degustada como uma configuração de terrorismo, conjuntura essa que aconchegou a consequência de revogar todas as resistências e trincheiras em relação aos regimes opressores e autoritários. Determinados regimes tiveram a habilidade de etiquetar como terrorista a relutância islamita, concebendo, desse modo, a justificação para lhe outorgar guerras hediondas e sem escrúpulos. Muitos islamitas foram estigmatizados como terroristas. Será que esta situação não possibilitou que as elites governantes existentes no universo islamítico rapidamente proclamassem esses islamitas como ameaças à segurança, ao comedimento e ao equilíbrio nacional? Será que dessa forma o Estado não tinha já fundamentações para adoptar mecanismos impetuosos e pouco constitucionais de combate a alguns desses movimentos islamitas?
Derivado aos impedimentos estratégicos com que os islamitas contemporaneamente se fronteiam, torna-se estimulante contemplar que a maioria das comunidades muçulmanas se está a transfigurar, em múltiplos aspectos, em “islâmica”. Na verdade, o número de muçulmanos a ingressar, com gradual certeza, segurança e proporção, nos princípios, preceitos e valores islâmicos é cada vez maior. Os problemas políticos e os dilemas de segurança principiaram quando os europeus arrogam um comportamento, baseado na teoria do conhecimento, que coliga o muçulmano ao conceito comunitário e religioso de comunidade muçulmana, e nunca à concepção individual e legítima de cidadão. No Ocidente, uma das maiores iterações epistemológicas é aquela que concebe as condutas dos muçulmanos como simples e triviais paradigmas de resistência. O muçulmano é, na maioria das conjunções, saboreado como um ser apático e indolente que unicamente reage a uma actuação habitualmente desfavorável e oriunda do Ocidente. Será que os muçulmanos não reagem, tendo em conta o momento e a circunstância, em formatos pacíficos e impetuosos? Será que a reacção por parte dos mesmos é permanentemente a jusante da nascente?
Certamente que existem vários intelectuais muçulmanos que censuram o estilo como o Ocidente os observa, ou seja como se os mesmos fossem provenientes de uma condição inferior, cinzenta e franzina. Será que o maior lineamento de benevolência eurocêntrica não provém daqueles que olham para o muçulmano unicamente como uma vítima desprotegida do Ocidente? Será que os muçulmanos são um simples e pardacento acessório, ou complemento, da história ocidental? Será que o Ocidente agasalha o monopólio dos valores universais? Será que o mesmo não subestima em demasia o resto do mundo?
Os acontecimentos que ao longo da história ornamentaram o Ocidente, como por exemplo o Renascimento, a Reforma, a Contra-Reforma, o Iluminismo e a Modernidade, acabaram por ser parte integrante de toda uma sequela de temperamento “militar”, cultural, social e político. Todavia, os mesmos não instituíram um desenvolvimento imprescindível ou altamente coerente que tenha que ser necessariamente decretado às sociedades muçulmanas. O confronto entre o eurocentrismo e o Islamismo vem subordinando, de modo gradual, a meditação em redor dos encadeamentos internacionais e das políticas nacionais para a segurança. Talvez o tempo aconchegue a capacidade de demonstrar que o repto arremessado pelo Islamismo não é matéria que possa ser vencida através de algumas campanhas contra o terrorismo.
A aprovação do uso de violência armada em elevada proporção, por parte do império americano, acaba por representar as fronteiras, as imperfeições e os limites do projecto do eurocentrismo. Os muçulmanos têm que albergar a possibilidade de imaginar um efectivo diagrama de transmutação, sem ter forçosamente que perfilhar o espólio cultural do Ocidente. Os islamitas acreditam num formato de vida superior através da aplicação dos recursos culturais islamíticos. Este pensamento acaba por colocar de lado a ideia de que somente os recursos culturais ocidentais são profícuos para a edificação de um futuro prazenteiro. Será que a existência do Islamismo não assinala o caminho da estruturação mundial plural?
Existem algumas dissemelhanças entre as múltiplas culturas islâmicas e a ideologia islamita. Um islamita é aquele que defende ou executa o recurso às armas, por oposição ao muçulmano que é unicamente um devoto na fé e na confiança islâmica. Será que a primeira particularidade do Islamismo não é o seu rancor em relação às diversas culturas islâmicas? Será que os bombistas suicidas não constituem o maior paradigma de violência e intensidade muçulmana? Será que os mesmos não ameaçam, em idêntica dimensão, os ocidentais e os muçulmanos?
O islamita peleja a multiplicidade da civilização muçulmana, ou seja tem a finalidade de estabelecer uma conspecção singular do Islão. O radicalismo islamita procura aniquilar os Islões tradicionais característicos de cada território. Será que o Islamismo pode ser considerado como uma extensão do Islão? Será que os islamitas não abandonam, em diversos momentos, o contexto islâmico? Será que o Islamismo é unicamente um excesso de Islão? Será que a natureza do Islamismo rompe integralmente com a doutrina islâmica, bem como com as tradições e memórias culturais de cada região? Será que a elite europeia não deve reconsiderar a configuração de como observa e saboreia o seu próprio poder?
Por decisão pessoal, o autor do texto não escreve segundo o novo Acordo Ortográfico.