Cuidados continuados de saúde mental entregues à Santa Casa da Misericórdia de Pinhel

A dois meses do final da legislatura, o Governo aprovou finalmente a sua criação mas entrega a maioria a instituições religiosas e a misericórdias, deixando pelo caminho grande parte das entidades com trabalho na área, constata a Sociedade Portuguesa para o Estudo da Saúde Mental (SPESM). A Santa Casa da Misericórdia de Pinhel é um dos exemplos.

Há cinco anos existe legislação que prevê a criação de unidades de cuidados continuados para doentes com problemas de saúde mental. A dois meses do final da legislatura, o Governo aprovou finalmente a sua criação mas entrega a maioria a instituições religiosas e a misericórdias, deixando pelo caminho grande parte das entidades com trabalho na área, constata a Sociedade Portuguesa para o Estudo da Saúde Mental (SPESM). O seu vice-presidente, o psiquiatra Fidalgo de Freitas, fala de “interesses económicos” e do regresso a um modelo “asilar” e “assistencialista”.

O fecho dos três hospitais psiquiátricos, o Miguel Bombarda, em Lisboa, o Centro Psiquiátrico de Recuperação de Arnes e o Hospital do Lorvão, ambos na região Centro, há cerca de seis anos, marcou o fim simbólico de uma filosofia psiquiátrica em que os doentes mentais eram mantidos dentro de muros, e afastados da comunidade.

Foi anunciado que o fecho seria o início de uma nova abordagem na psiquiatria em Portugal, em que é suposto os doentes manterem-se, tanto quanto possível, nas suas casas e nas suas comunidades, com apoio técnico de proximidade. A institucionalização deveria ser uma exceção.

A criação das unidades de cuidados continuados para a saúde mental, tal como existem para doenças não psiquiátricas, seria a base do novo sistema. Mas, até hoje, nunca foram criadas. Previa-se, num decreto-lei de 2010, que existissem desde “residências de treino de autonomia”, e “residências autónomas de saúde mental”, às “de apoio moderado” e “de apoio máximo”.

Para avançar no terreno escolheram-se, por despacho governamental de 2011, 16 experiências-piloto levadas a cabo por oito entidades com experiência técnica na área desde há vários anos, a maior parte tendo como objetivo a reabilitação. Haveria três equipas de apoio domiciliário (uma em Braga, duas em Beja), várias unidades sócio-ocupacionais (no Porto, Coimbra, Viseu e Lisboa), e residências autónomas ou de treino da autonomia. Apenas se previa quatro residências de apoio máximo, destinadas a casos de tal forma graves que necessitariam de institucionalização a tempo inteiro (três na região de Lisboa e uma em Loulé).

Mais projetos
O atual despacho conjunto dos ministros da Solidariedade e da Saúde, de 29 de julho deste ano, vê finalmente nascer os projetos de cuidados continuados de saúde mental, e em maior número do que estava previsto há quatro anos. O atual Governo propõe concretizar 20 projetos em vez de 16, entre 2015 e 2017.

Mas são apenas três as instituições a quem era apontada experiência na área que estão na nova lista. Pelo caminho ficam, por exemplo, a Associação para o Estudo e Integração Psicossocial, que criou há 28 anos a primeira estrutura de suporte para pessoas com doença mental na comunidade, a Associação de Reabilitação e Integração Ajuda, que faz trabalho na área desde 1991, ou a Comunidade Vida e Paz, que desde 2001 tem uma unidade de apoio residencial para pessoas em situação de dependência por doença psiquiátrica. São as três em Lisboa.

Avançam da antiga lista apenas a Associação de Saúde Mental do Algarve, que mantém uma residência, o Instituto das Irmãs Hospitaleiras do Sagrado Coração de Jesus que mantém os três projectos, e o Instituto São João de Deus, que passa de um projeto para seis na nova lista. De resto, “grande parte dos projetos é entregue a misericórdias e institutos religiosos”, constata o diretor do Programa Nacional para a Saúde Mental, Álvaro de Carvalho. É o caso da Santa Casa da Misericórdia do Porto, da de Pinhel, ou o Centro Social Paroquial da Polvoreira, no distrito de Guimarães. Em 20 projetos, 13 ficam a cargo de instituições religiosas e misericórdias.

Um comunicado de 10 de setembro da Sociedade Portuguesa para o Estudo da Saúde Mental, entidade fundada em 1984 que junta profissionais de saúde da área, denuncia “o súbito interesse de entidades que até ao momento têm estado afastadas do trabalho desenvolvido nesta área”. O psiquiatra Fidalgo de Freitas vai mais longe: “Só pode ser um negócio. É tudo estranho. Até ao momento os projetos estavam em banho-maria por falta de verbas.”

Fidalgo de Freitas, que é ex-diretor do Departamento de Psiquiatria do Hospital de São Teotónio, em Viseu, diz que “este procedimento gera em nós uma suspeita legítima, é tudo feito à socapa, no final da legislatura. Tem de haver outros interesses”. O médico diz que claramente estas entidades “têm instituições vazias e a solução é encher com doentes de saúde mental”.

“Mini-hospitais psiquiátricos”?
Além do “desrespeito pelas instituições particulares de solidariedade social, que há anos têm trabalho nesta área”, o médico nota que muitas unidades são no interior do país, Soure, Ponte de Lima, Pinhel, todas com “residências de apoio máximo”. “Não consta que haja assim tantos doentes mentais nestas áreas, o que significa que os doentes vão ser levados para lá. É um regresso aos asilos, só que mais bonitos por fora.”

“Será que Pinhel, Soure, Elvas e a Fundação S. Barnabé [em Elvas] vão acolher pessoas desses locais com doença mental grave, desconhecidos do sistema, ou vão ser mini-hospitais psiquiátricos para onde vão ser deslocadas pessoas de locais e vidas distantes?”, pergunta, por seu lado, o psiquitra António Redondo, da direcção da SPESM.

“As pessoas devem ser mantidas até ao limite em casa, nas suas comunidades. O que se vai fazer é segregação”, Fidalgo de Freitas. “Estas pessoas precisam de reabilitação, precisam de ser autonomizadas.”

O diretor do Programa Nacional para a Saúde Mental, Álvaro Carvalho, constata que “muitas destas entidades não têm experiência conhecida neste âmbito”. O responsável estranha “o não aproveitamento das entidades selecionadas em função da sua experiência técnica”.

“Temos grande receio de que o que está constituído seja uma resposta assistencialista e de transinstitucionalização”. Ou seja, em vez de retirar os doentes de instituições, e trabalhar com eles para que sejam autónomos, colocam-se as pessoas noutras instituições. Os cuidados continuados em saúde mental previam a criação “de um plano individual de reabilitação”, lembra, e o acompanhamento da sua evolução.


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