A primeira vez que o Governo recorreu à requisição civil foi em 1987.

A requisição civil é determinada ao abrigo de um decreto-lei de 1974 sobre a “necessidade de assegurar o regular funcionamento de certas actividades fundamentais, cuja paralisação momentânea ou contínua acarretaria perturbações graves da vida social, económica e até política em parte do território num sector da vida nacional ou numa fracção da população”. O Governo socialista avançou, perante a greve da TAP durante o verão de 1997, com a requisição civil. O Governo de António Guterres decidiu “promulgar” a requisição civil na TAP. Essa deliberação acabou por ser considerada válida pelo Supremo Tribunal Administrativo. Ao contrário do que aconteceu na greve de quatro dias convocada para a época do Natal de 2014, o Governo decidiu agora não decretar requisição civil para a greve dos pilotos da TAP. Sem dar uma justificação, Passos Coelho, disse que em Dezembro o Governo promulgou a requisição civil por estarem reunidas “circunstâncias muito excepcionais”, ou seja por estar em causa a concentração das famílias. Será que é relevante, oportuno e conveniente ter uma transportadora pública em que o serviço público está constantemente a ser colocado em causa devido às greves? Será que tem algum interesse ter uma transportadora pública que não garante que os portugueses passam as férias ou o Natal junto dos familiares e amigos? Será que é vantajoso ter uma transportadora de chancela pública que não garante a deslocação dos portugueses entre os diferentes locais do território nacional, alguns dos mesmos constituídos por ilhas de difícil acesso com outro meio de transporte? Será que não é mais conveniente para os portugueses ter uma transportadora privada em que o Estado pague para garantir um efectivo serviço público? Será que a execução de serviços de interesse público implica necessariamente que os serviços sejam concretizados por empresas públicas? Será que existe descontinuação no serviço de electricidade em larga escala pelo facto de a EDP ter sido privatizada? Será que deixámos de ter serviço público de telecomunicações com a privatização desse sector? Será que em determinadas ocasiões os sindicatos não tentam exercer uma pressão ilegítima? Será que esta greve não hospeda o cunho da irresponsabilidade, da insensatez e do desdém?

Não concordo com todas as privatizações, nem tão pouco com a ideia de que todos os serviços públicos devem ser privatizados. Um Governo que diz defender a democratização da economia não pode estar contra o sector público e financeiro do Estado. Vender património nacional pode ser um caminho umbroso e pardacento a médio prazo. As empresas privadas têm como principal finalidade o lucro dos seus accionistas. Em teoria esta noção metamorfoseia todo o esquema ou arquétipo de “alicerce social”, uma vez que o principal objectivo não é a prestação de serviços, mas sim o lucro dos accionistas. Será que as empresas públicas sempre constituíram representações que privilegiassem a conveniência e a coesão nacional? Será que o facto de uma determinada empresa ser pública não acaba por condicionar e influenciar bastante o processo evolutivo da mesma, bem como os seus vértices de desenvolvimento e de autonomia? Será que uma parte do lucro das empresas privadas não está interligada a paradigmas diferentes de investimento, a telas de incremento do volume de negócio e a texturas densas de poupança? Será que devemos saborear as empresas privadas como a rosto do lucro simples e fácil?

A requisição civil agasalha um temperamento excepcional ou extraordinário, podendo ter por objectivo a pres­tação, individual ou colectiva, de serviços; a concessão e transmissão de bens móveis; a aplicação e utilização, ainda que provisional, de quaisquer bens ou serviços públicos; e as empresas públicas de economia mista ou quase privada.

A interpretação daquilo que são as actividades ou serviços essenciais acarreta algumas condições como sejam: o tra­tamento diferenciado outorgado à greve segundo certas categorias ou classes; a deliberação e resolução do manifesto antagonismo existente entre a liberdade do grevista e o direito ao atendimen­to das indispensabilidades sociais; e as configurações discriminadas de resolução para as vindicações grevistas como modo de contrapartida. Será que o direito à greve é absoluto, tendo em conta o capital interesse públi­co? Será que o mesmo não recebe unicamente limitações pontuais que são revestidas de essenciais?

Na verdade, a liberdade sindical tem bastante importância no que respeita à ordem social e económica do País, não estando, todavia, acima dos desejos e necessidades prementes, essenciais e inadiáveis da colectividade. Os grevistas e as associações sindicais devem assegurar os serviços mínimos indispensáveis para a satisfação das necessidades sociais improrrogáveis ou interesses constitucionalmente protegidos. Será que o respeito pelos princípios da necessidade, da adaptação e da proporcionalidade não deve assumir um carácter “vinculativo”? Será que o direito à greve também não é fundamental e legítimo?

A greve é sem dúvida um direito fundamental, sendo a mesma regulamentada por lei. Esta regulamentação pode estabelecer objectivamente uma restrição ao seu exercício, mas unicamente em situações limite ou extraordinárias. O Código do Trabalho procede à regulamentação do direito à greve, assumindo especial relevância para esta temática os artigos que se pronunciam sobre a obrigação de prestação de serviços durante a greve, assim como a definição de serviços a assegurar durante a greve.

Os conceitos de “necessidades sociais improrrogáveis” e de “serviços mínimos” assumem enorme importância e pertinência, uma vez que da sua definição e da sua significação, assim como dos formatos em que forem concretizados depende a maior ou menor limitação do direito de greve, nos termos acolhidos e consentidos pela lei e pela respectiva Constituição. Neste sentido, podemos afirmar que se o conceito e o “julgamento” de serviços mínimos for muito amplo ou o conceito de necessidades sociais impreteríveis for excessivamente abrangente, está descoberta a fórmula de prensar o direito de greve, nulificando boa parte do resultado ambicionado com o exercício do direito. Na realidade, ao longo dos tempos a jurisprudência tem tentado interpretar muito latamente ou “generosamente” tanto o significado de necessidades sociais inadiáveis que devem ser saciadas durante o período de greve, bem como o significado dos serviços mínimos a satisfazer durante a greve. Será que em muitas ocasiões não é praticamente atingido o limite em que o próprio conteúdo fundamental do direito de greve é desembaulado ou esvaziado? Será que não é fundamental uma correcta ponderação das necessidades sociais impreteríveis a satisfazer durante o período de greve? Será que o tribunal arbitral, ao não fixar “correctamente” os serviços mínimos a prestar durante a greve, não viola, ainda que epidermicamente, os princípios da necessidade, da adequação e da proporcionalidade?

Relativamente à acepção dos serviços mínimos a prestar, em tempo de greve, pelos colaboradores das empresas públicas de transporte colectivo de passageiros, podemos referir que geralmente estes serviços são fixados em percentagem do serviço habitualmente prestado pelas empresas, sem qualquer fundamentação das necessidades sociais impreteríveis a que se deseja satisfazer com esses mesmos serviços. Salientar que o direito à greve, enquanto direito capital, somente pode ser restringido nos “cânones” admitidos na Constituição e tal restrição nunca pode abreviar o alcance, a dimensão e a abrangência do conteúdo fundamental do direito. Dessa forma, as indispensabilidades sociais impreteríveis descritas na Constituição são unicamente aquelas necessidades cuja não satisfação se traduz na violação dos direitos e conveniências constitucionalmente salvaguardados e não meros inconvenientes ou contratempos resultantes da privação fortuita de determinado bem ou serviço. Neste entrecho, para definição e classificação destas necessidades, torna-se importante avaliar as circunstâncias, conjunturas e contextos efectivos de cada greve em concreto com a finalidade de determinar se estamos, ou não, perante conjunções que requisitem a satisfação de necessidades de âmbito social tão premente e urgente que não possam ser saciadas de outro modo e não admitam qualquer espécie de protelação.

Por sua vez, e dentro do mesmo itinerário de pensamento, a definição de serviços mínimos deve reservar-se unicamente a acautelar prejuízos extremos e infundamentados, não devendo culminar na revogação do direito à greve. A greve, na esmagadora maioria das ocasiões, não pode, pela chancela da obrigação de prestação de serviços mínimos, esbanjar eficiência, robustez e eficácia própria, assim como deixar de produzir os seus resultados normais. Será que a greve se deve metamorfosear numa afiguração de greve? Será que qualquer empresa do sector dos transportes é degustada, pela própria lei, como empresa que se destina à satisfação de necessidades sociais impreteríveis?