Contemporaneamente a ideia de família degustada como um porto de abrigo e um ponto de equilíbrio ou de organização social parece estar desactualizada.

Vivemos numa sociedade em apressada transfiguração, na qual o conceito de família não deixou de ter relevância, pertinência, robustez ou energia, todavia atravessa um período de profunda metamorfose. A família está constantemente em mudança, pois participa activamente nas dinâmicas que compõem as conexões sociais, padecendo com as modificações que ocorrem na configuração política, cultural, social e económica em que está encaixada. Será que as famílias contemporâneas não assumem a chancela do relacional e do individual? Será que esta condição não é paradoxal? Será que os vínculos familiares não se edificam e não se amputam na “voltagem” existente entre esses dois extremos? Será que a família não pode ser representada como um conjunto de pessoas ajustado pelo bem-querer, no qual os adultos cuidam e protegem as crianças?
A família moderna dirige-se pelo fenómeno da afectividade, uma vez que as correspondências emotivas, sentimentais e afectivas preenchem uma superfície, em oposição aos encadeamentos consanguíneos, privilegiada e distinta. Na sociedade “contraditória” em que habitamos é perfeitamente possível encontrar famílias com fortes ligações afectivas e sólidas configurações económicas, bem como famílias desestruturadas com parcos recursos sociais e económicos. Salientar que também existem famílias nucleares por questões de conveniência ou de sobrevivência. Será que não é fundamental agasalhar uma perspectiva pluralista da família? Será que os recentes e inúmeros “formatos” de família não espelham as transformações nos comportamentos sociais do homem e da mulher na existência social? Será que não é necessário envolver as dissemelhantes “arrumações” familiares?
No âmago da estrutura familiar, podemos seguramente considerar as crianças como os elementos mais frágeis em contextos de conflito, de altercação e de antagonismo. Esses contextos estão alicerçados no divórcio; nas separações; e nas reorganizações familiares. As crianças são os membros mais vulneráveis devido sobretudo à falta não só de autonomia, como também de capacidade absoluta de defesa e de “deliberação”. Na realidade, estas fracturas e mutações na medula familiar têm sido mencionadas como condições potenciais de interferência negativa nos decursos de parentalidade, provocando transformações concretas na qualidade das conexões parentais; na perfilhação de estilos parentais inapropriados; e na inexistência de disponibilidade ou de flexibilidade emocional. Será que as crianças dispensam as figuras parentais que a fortalecem, a despertem e a idolatrem de uma forma especial e peculiar? Será que as famílias não devem sentir e ter a capacidade de edificar projectos consistentes e pigmentados para as crianças e jovens? Será que não é fundamental criar e disseminar configurações de desenvolvimento e de amadurecimento para as gerações sequentes? Será que os pais não devem assumir benignos e densos compromissos com os filhos? Será que não é aconselhável uma cooperação activa de ambos os progenitores? Será que as crianças devem ser usadas como “arma de arremesso” nas disputas conjugais pela sua guarda ou custódia? Será que em diversas ocasiões os adultos não arremessam nas crianças os seus dilemas, bem como as suas conveniências particulares e conjunturais?
O desaparecimento de pessoas, numa perspectiva histórica, acaba por constituir um fenómeno recente. A Primeira Grande Guerra acarretou o desaparecimento de milhares e milhares de soldados, este cenário começou a desencadear pontos de interesse no campo da investigação, nomeadamente no das ciências humanas e sociais. Realçar que a ausência de uma conceitualização bem demarcada possibilita significações diferentes relativamente a um mesmo tema, sendo a significação dos vocábulos desaparecido e desaparecimento extraordinariamente emaranhada e divergente. Em variadíssimas ocasiões a metodologia usada para distinguir os motivos do desaparecimento é: a evasão; o sequestro executado por terceiros; o rapto parental ou a subtracção de menores; as crianças migrantes desacompanhadas ou abandonadas; as crianças perdidas; e as crianças “feridas”. Em Portugal, os cenários mais vulgares ou frequentes são a subtracção de menores e as fugas, fundamentalmente de crianças institucionalizadas. Infelizmente ocorrem muitos desaparecimentos de crianças em Portugal, sendo esta condição altamente inquietante e preocupante. O desaparecimento de uma criança é uma situação extremamente grave que deve de imediato desencadear um conjunto de diligências com vista à sua localização.

Quando escrevemos sobre contextos de desaparecimento, deparamo-nos com episódios pardacentos, difíceis e complicados que embrulham um aglomerado de agentes sociais, designadamente os familiares daquele que está ausente. A perda de um membro do núcleo familiar, autonomamente à sua condição de provisória ou definitiva, origina uma desorganização de índole individual e grupal. Logo, acaba por ser indispensável a reestruturação e redistribuição dos papéis no cerne da família, assim como o refazimento do equilíbrio e da harmonia, de modo que o cenário possa regressar a patamares razoáveis de funcionamento.
A perda de uma criança, contemplada como um ser excessivamente vulnerável e “subordinado” aos cuidados dos adultos, é um quadro dramático, no qual o choque é extremamente visceral e cinzento, sobretudo nos pais. A perda de um filho, mesmo que temporária, dilacera e suspende as aspirações de qualquer casal, sendo certamente um dos acontecimentos mais tormentosos que um adulto pode experienciar. A perda acarreta profundas alterações nas interacções diárias e a redefinição dos papéis sociais dos pais. Os progenitores podem aquartelar volumosas dificuldades em lidar com os seus próprios sentimentos de incompetência, de inabilidade, de culpa e de impotência. Será que a culpa não é o sentimento predominante nos pais de crianças desaparecidas? Será que esses pais não se sentem socialmente sentenciados como incompetentes para prestar cuidados ao seu filho?

Uma perda escarpada e imprevista transporta reacções iniciais alicerçadas no choque; no impacto; na impotência; na rejeição; na desconsolação; no carpido; na angústia; no afogo; no sofrimento; no temor; e no pânico. Nos casos em que o desaparecimento ocorre, estes sentimentos estão presentes em configurações ainda mais veementes. Vive-se um estado de profunda desarrumação emocional que em variadíssimas ocasiões desagua na insónia, no delírio, na depressão grave e na própria vontade de morrer. A depressão representativa deste período consiste num afastamento global em relação à realidade, ou seja as ocupações, os entretenimentos e as outras pessoas já não desencadeiam qualquer género de interesse. Com o passar do tempo a realidade do desaparecimento impõe-se cada vez mais à consciência.
O desaparecimento físico e incompreensível de um familiar pode ser analisado como uma espécie de separação entre os vivos, uma vez que não existem confirmações categóricas relativamente à perda, ou seja neste tipo de casos nem a vida, nem a morte estão asseveradas. Será que o desaparecimento não é uma ruptura sem explicação? Será que existe diferenciação entre desaparecimento autêntico e desaparecimento simbólico? Será que o termo luto não pode ser aplicado a todas as experiências de separação, mesmo naquelas em que a morte ainda carece de confirmação?

Os “discernimentos” acerca da perda e do afastamento acabam por ser bastante idênticos, variando consoante a categoria de implicação afectiva. As respostas que cada pessoa desenvolve após um luto ou uma separação estão subordinadas à própria importância real da perda sofrida e à história pessoal. Normalmente quanto mais consistente e íntima for a ligação que terminou, mais visceral, cinzento, umbroso, continuado e irremediável será o sentimento de perda. O padrão de personalidade e o modo de amar a pessoa que desapareceu circunscrevem a particularidade e a força das reacções à perda. Todos os acontecimentos que desfilam fora do ciclo normal ou natural da vida são seguramente mais traumáticos, tormentosos e dolorosos. Será que é fácil imaginar um crime mais aterrador na nossa sociedade do que o rapto de uma das nossas crianças? Será que o forte impacto emocional deste género de crime na sociedade; as imposições colocadas aos próprios investigadores; e a parca experiência e formação nesta superfície, não constituem condições que, em variadíssimas circunstâncias, influenciam o resultado final de uma investigação? Será que não é importante criar condições que permitam aumentar a eficácia investigatória na gestão e resolução destes casos? Será que a existência de uma estrutura pluridisciplinar com competência nacional para a investigação de desaparecimentos e raptos de crianças, formada por investigadores experientes com formação específica neste tipo de crimes não é fundamental?

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