No encadeamento económico contemporâneo, de enorme crise e perturbação universal, é especialmente adequado debater a importância do mercado de habitação.

Na realidade, a dualidade entre mercado de arrendamento e mercado de habitação própria constitui uma temática bastante antinómica, uma vez que os mesmos aconchegam características dissemelhantes e oferecem desiguais benefícios para aqueles que procuram habitação.

Em Portugal existem inúmeros contratos de arrendamento com valores de renda perfeitamente desadequados e desajustados. Esta conjuntura acaba por não permitir a execução de obras de manutenção e reabilitação nos respectivos edifícios. Os imóveis, sem qualquer registo de intervenção, degradam-se rapidamente, motivando a demolição dos próprios de forma a proporcionar construções modernas e independentes dos contratos de arrendamento antigos.

Podemos definir contrato de arrendamento como aquele em que um dos outorgantes se obriga a proporcionar ao outro, mediante o pagamento de uma renda, o usufruto de um determinado imóvel. Realçar, o facto de o arrendamento urbano poder agasalhar dois propósitos, o habitacional e o não habitacional.

Contrariamente aos novos contratos de arrendamento, os contratos antigos prosseguiram com avultados problemas e ilogismos legados pelos regimes antecedentes que irreflectidamente continuaram a regular esses contratos, particularmente em rendas actualizadas com taxas desactualizadas que nunca se apropinquaram aos valores concretos do mercado. Infelizmente a lei do arrendamento que o Governo pretende implementar ainda coloca muitas ressalvas aos senhorios para a possibilidade de despejo. Nestes moldes parece-me manifestamente difícil simplificar o contrato de arrendamento nas etapas de celebração, concretização e cessação. Contudo, aplaudo o Governo por de algum modo pretender aniquilar as injustiças e arbitrariedades intrínsecas aos processos de arrendamento antigos.

Nas décadas de 70 e 80, o “ímpeto” do crescimento urbano em Portugal foi cimentado em edifícios para arrendar. Os portugueses que foram para as cidades à procura de superiores condições de vida eram na sua esmagadora maioria inquilinos. A paralisação das rendas num período de robusta inflação, assim como a transferência, ainda que “fraccionária”, dos direitos de propriedade dos senhorios para os inquilinos modificaram completamente o semblante de laboração do mercado imobiliário urbano. Esta conjunção acabou por hipotecar inevitavelmente o investimento em restauro e conservação, provocando a deterioração acentuada do panorama habitacional e a amamentação de iniquidades principalmente para os proprietários.

A promulgação do Novo Regime do Arrendamento Urbano (NRAU) em 2006 colimou a rectificação do anterior regime de arrendamento que consentiu a manutenção de rendas com valores profundamente ridículos. Todavia, a eficiência e a equidade do NRAU ainda está por demonstrar, uma vez que as rendas e as fórmulas de despejo, por força da lei, se mantiveram praticamente inalteradas, ou seja com franzinos aumentos e com robustas dificuldades respectivamente.

Podemos, sem um esforço relevante, apontar as principais causas para a situação de degradação dos edifícios: os inquilinos que degustaram, e continuam a degustar, os custos reduzidos com a habitação e com a adjacente ausência de actualização do valor da renda, porém alguns deles também ficaram circunscritos a um mais que justo decrescimento das condições de bem-estar; os senhorios, obviamente os menos culpados, que desguarnecidos de rendimentos justos para investir na preservação dos imóveis alhearam-se das obrigações de conservação regular dos edifícios; as Câmaras Municipais, que apesar de terem intimado os proprietários a efectuar obras de conservação e de terem, em ocasiões de ruína iminente, derribado edifícios e albergado os moradores oriundos dessa espécie de despejo, nunca desfrutaram de autonomia e vontade para alterar a lei geral; e o Estado que aprovou leis e critérios de arrendamento totalmente iníquos, contribuindo para a decadência da dignidade humana, bem como para o indiscriminado exercício de direitos contratuais por parte dos inquilinos, estrangulamento do mercado de arrendamento, definhamento do tecido urbano e aquisição especulativa de edifícios exautorados. Será justo solicitar aos senhorios obras de beneficiação nas suas casas quando os mesmos saborearam, e continuam a saborear, rendas de valores burlescos? Será que a lei não necessita de uma efectiva jurisprudência e doutrina sedimentada que outorgue segurança, reputação e asseveração ao mercado de arrendamento?

Os arquétipos que presentemente vigoram no arrendamento incidem unicamente, ou especialmente, sobre a umbrosa realidade do próprio arrendamento urbano. Contudo, o desejável seria que os mesmos fossem autênticas telas de equilíbrio e concordância capazes de compatibilizar as conveniências antinómicas entre senhorios e inquilinos. Os direitos de propriedade e de habitação, que são constitucionalmente e constantemente “homenageados” na lei, deveriam assumir um papel medular na economia e no conforto social. As leis de arrendamento protegeram, na esmagadora maioria das disposições, as finalidades e interesses dos inquilinos. Será que a lei que Passos Coelho “instaurou” irá conquistar a mais que ambicionada harmonia colectiva? Como são executadas as obras coercivas? Qual vai ser o destino dos imóveis devolutos? Será que com esta lei se alteraram verdadeiramente os cânones da acção de despejo? Será que foram modificados, na sua essência e abrangência, os moldes de extinção dos contratos?

O estudo das potencialidades e debilidades do mercado de arrendamento e do mercado de habitação própria pode constituir a inclinação necessária para determinar os motivos pelos quais o comportamento da Administração Pública, na perspectiva da nomeação, promoção e concretização das políticas de habitação, ter sido tão inconsequente nas últimas décadas. Uma das principais finalidades é compreender, obviamente sem certezas de que essa conjuntura venha a desfilar, de que modo o mercado de habitação própria e o mercado de arrendamento conseguirão coexistir em fragrâncias de comedimento e simetria.

As revisões do Regime de Arrendamento Urbano (RAU) devem ir ao encontro de um conjunto de objectivos considerados fundamentais para o profícuo e salutar desenvolvimento do mercado habitacional português. Ou seja, deve ser realizada uma conjectura de regulamentos que estimulem o comércio de arrendamento; produzam contextos magnéticos para o investimento privado no que diz respeito ao “departamento” imobiliário; simplifiquem a mobilidade das populações, fortalecendo a confiança e segurança das “indumentárias” económicas; promovam a qualidade e competência habitacional; propaguem a regeneração e recapacitação urbana; e concebam a modernização e renovação do comércio, difundido, simultaneamente, uma coerente afectação de recursos públicos e privados.

Em abono da verdade, também será proveitoso referir que o reconhecimento das irregularidades mais frequentes existentes no edificado, assim como o estudo de programas de intervenção mínima e a avaliação dos respectivos custos com as possíveis obras poderiam constituir configurações de colaboração relevante para que os proprietários, no momento da decisão, melhor avaliassem os seus bens patrimoniais.

A proposta do Governo acarretou algumas vantagens, mas acima de tudo equidade, para os contratos antigos, na medida em que possibilita uma superior negociação entre as partes envolvidas, quer ao nível do contrato, quer ao nível da própria renda, não havendo dessa forma uma protecção excessiva do inquilino em prejuízo do proprietário do imóvel. No que se refere ao incumprimento de pagamento, a “legislação” implementada parece ser muito flexível com o inquilino, deixando o proprietário não só com os “sulcos” do processo, como também obrigado a ter o seu imóvel “estático” com um inquilino que não cumpre o contrato.

Há a necessidade de encontrar e implementar contextos mais favoráveis a todos aqueles que estão dispostos a executar a reabilitação urbana em detrimento da edificação nova. Os impostos significativamente mais baixos para a reabilitação poderão funcionar como um tónico. Actualizar as rendas de modo veloz, e com valores mais próximos das rendas aplicadas nos actuais contratos de arrendamento, a todos os senhorios que estiverem dispostos a executar obras de conservação e reabilitação urbana nas suas propriedades também poderia ser uma estratégia bastante sensata e proveitosa.

Num período em que o mercado de arrendamento tem um incremento na procura, talvez fosse o momento para anexar o arrendamento à reabilitação urbana e, desta forma, dinamizar este mercado que porventura estará a aleitar a sua própria dimensão espacial no âmago do mercado de habitação.